O beija-flor está de volta, na projeção do documentário que celebra a memória de Herbert de Souza, o Betinho, em seus 18 anos de morte, ocorrida em 9 de agosto de 1997. O sociólogo, criador da campanha contra a fome e um dos fundadores do Viva Rio, será lembrado em ações da “Semana do Voluntariado do Viva Rio”, que acontece de sexta-feira (28) a 4 de setembro.
Para Rubem César Fernandes, diretor executivo do Viva Rio, o principal legado de Betinho foi a Ação da Cidadania contra a fome, e miséria e pela vida. “Mexeu nos gestos mais simples dos movimentos sociais com coisas singelas, como a cesta básica. Herdamos uma cultura em que o sujeito era coletivo, com os sindicatos. A campanha da cidadania começou a falar do eu, passou do nós para o eu, uma mudança conceitual paradigmática”, classificou.
Rubem lembra que o movimento cresceu na época do “Fora Collor”, quando a sociedade brasileira viveu um vazio. “Betinho deu força à ideia de fazer uma campanha contra a fome, em que cada um fazia a sua parte, uma postura ativa de cidadania. O movimento cresceu e teve uma adesão fantástica, não precisava passar pelos políticos, era direto. Era um protesto alegre, de acordo com a época de otimismo, de mudanças globais. Muito sedutor e namorador, Betinho vivia cercado de moças bonitas”, recorda.
No início da ação da cidadania, Betinho divulgou a história do beija-flor, que tentava apagar um incêndio na floresta. O leão pergunta, irônico: “Você acha que sozinho vai conseguir apagar esse fogo?”, e ouve a resposta: “Sei que não posso dar conta disso sozinho, mas estou fazendo a minha parte”. O curta será exibido no Viva Rio, às 18h30 de segunda-feira (31), junto com trechos do documentário Três irmãos de sangue e uma gravação feita pelo jornalista Ancelmo Gois, nos 15 anos de morte.
Ao reconhecer a importância da comunicação de massa, Betinho preparou a sociedade civil para lidar com as diferenças, romper com os guetos e as tribos, na avaliação de Pedro Strozemberg, secretário executivo do Instituto de Estudos da Religião (Iser). “Ao se comunicar com o conjunto da sociedade, ele se deparou com a diversidade. Com a ação da cidadania, Betinho dialogava com ricos e pobres e soube transformar o discurso da fome em ação política, não assistencialista. Marcou a ideia de democracia com a frase: “Ou serve para todos ou não serve para ninguém”, destaca Strozemberg.
Na vida pessoal, foram muitos os percalços. Daniel Souza, 49 anos, filho do primeiro casamento, só veio a conviver com o pai na volta do exílio, aos 16 anos. Ele e sua mãe, Irles Carvalho, foram para exílios em países distintos dos de Betinho. A verdadeira aproximação entre filho e pai só aconteceu quando Betinho contraiu Aids. “Passamos a jantar todas as terças-feiras”, lembra. Formado em Desenho Industrial, Daniel trabalha com uma produtora de causas públicas e, este ano, lança o documentário Betinho, a esperança equilibrista, em homenagem aos 80 anos que o pai faria em 3 de novembro. Do segundo casamento de seu pai, com Maria Nakano, nasceu Henrique, atualmente professor no interior da Bahia.
Trajetória
Betinho era da Juventude Universitária Católica (JUC), de origem marxista, que deu uma guinada à esquerda com a criação da Ação Popular (AP), em 1962. “Ele não concordava muito com a linha maoísta adotada pela AP e sofreu perseguição ideológica, o botaram para fazer papel de pipoqueiro. Havia um romantismo com o trabalho operário e ele foi parar numa fábrica de xícaras. Achava aquilo muito chato e repetitivo e começou a produzir quantidades maiores de peças, quando o patrão o achou inteligente demais e o puxou para a direção”, lembra Rubem, divertido.
O sociólogo foi criado em ambientes inusitados, como uma penitenciária e uma funerária, onde seu pai trabalhava. Sofreu influências de padres dominicanos em sua formação e defendeu as reformas de base, sobretudo a reforma agrária, durante o governo João Goulart. Vítima de perseguição na ditadura, exilou-se no Chile, em 1971, quando passou a assessorar Salvador Allende.
Os compositores João Bosco e Aldir Blanc o homenagearam como “o irmão do Henfil”, na canção O bêbado e o equilibrista. Voltou ao Brasil em 1979, com a anistia. Fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em 1981, com os economistas Carlos Afonso e Marcos Arruda. Já em 1993, estava entre os fundadores do Viva Rio, em meio à comoção pelas chacinas de Candelária e Vigário Geral.
Em 1986, descobriu ter contraído Aids – que o matou em 9 de agosto de 1997 – na transfusão de sangue a que era obrigado a se submeter, assim como seus irmãos Henfil e Chico Mário, todos hemofílicos e também falecidos.
Segundo Rubem, Betinho foi um dos primeiros a assumir a doença. “Teve coragem de se expor numa época em que havia muito preconceito com o HIV. Liderou um movimento positivo das pessoas contaminadas, com cuidados e generosidade ao doar”, conclui.
(Texto: Celina Côrtes|Fotos: Vitor Madeira, Paulo Barros e álbum de família)