Há exatos quinze anos uma tragédia que marcou a cidade do Rio de Janeiro acontecia dentro do ônibus que fazia o itinerário Gávea – Central do Brasil. O episódio, que ficou conhecido como “Ônibus 174”, mudou os rumos da política de segurança pública da cidade, foi roteiro de documentários, filme de ficção e continua sendo tema de debate até hoje.
Em entrevista para o Viva Favela, Damiana Souza, última refém a deixar o ônibus, relata o que aconteceu no dia e como tem sido sua vida após a tragédia. “Como é que pode a gente sair de casa, feliz, de mão dada uma com a outra…Era dia 12 de junho. Encontramos meu marido no caminho e ele falou ‘vocês estão com cara de que vão aprontar’ e a Geisa respondeu ‘a gente vai passear no shopping’ e descemos rindo”, lembra.
O desenho da tragédia
Geisa Gonçalves tinha 21 anos e estava grávida de dois meses. Ela e Sandro Nascimento, que tinha a mesma idade, foram as duas únicas vítimas fatais do episódio. Geisa viera de Fortaleza dois anos antes e estava morando na Rocinha fazia oito meses. Lá ela conheceu Damiana e se tornaram grandes amigas, tanto que se tratavam como mãe e filha. As duas também eram companheiras de trabalho na Ong Curumim, que funcionava no alto da favela. No 12 de junho do ano 2000 as duas embarcaram juntas no ônibus 174 rumo a um banco no Jardim Botânico para trocar um cheque no valor de R$130, referente à venda de cestas de material reciclado confeccionadas por Geisa na Ong.
Sandro subiu alguns pontos depois armado com um revólver. Um dos passageiros percebeu a arma na cintura dele e avisou à uma viatura da polícia que passava pela rua no momento. A partir daí a tragédia começou a se desenhar. Os policiais pararam o ônibus para fazer uma averiguação e Sandro fez reféns os oito passageiros que estavam no veículo.
Foram mais de quatro horas de terror dentro do ônibus, dos quais Damiana destaca dois momentos de maior tensão. O primeiro, quando Sandro disse que mataria uma das reféns depois que contasse até cem. “Ele contava pulando os números, quando chegou no cem, ele fez ela se abaixar e fingiu ter dado um tiro na cabeça dela”, recorda. O outro foi quando ele colocou a arma na cabeça da Geisa e disse que ela iria morrer. “Ele dizia o tempo todo que a culpa era da polícia, que ele só queria ir embora, que ele não ia fazer nada, mas que a polícia causou a situação. Depois ele começou a gritar, fez um disparo para fora do ônibus, ficou fora de si e dizia que iria matar alguém”.
Leia mais sobre os 15 anos da tragédia do 174 no portal Viva Favela
Na época Damiana já tinha problemas de saúde e passou mal durante o sequestro, sendo libertada em seguida. “A última coisa que eu lembro é da voz de Geisa falando ‘mãe, não morra’ e da mão dela puxando meu rosto. Agora eu sei por que ela tava fazendo isso, era porque minha boca estava torta, eu estava tendo um AVC (Acidente Vascular Cerebral)”, emciona-se.
“O Sandro era mais um”
Já era noite quando Sandro desceu do ônibus ainda com a arma apontada para a cabeça de Geisa. O que parecia o fim do terror, acabou tendo um desfecho trágico. O policial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), Marcelo Santos, disparou contra Sandro, mas acertou o queixo de Geisa, que acabou levando três tiros nas costas do sequestrador.
Sandro morreu asfixiado pelos próprios policiais depois de ser colocado no camburão. Ele era era um dos sobreviventes da chacina da Candelária, já havia passado por vários abrigos e vivia nas ruas quando cometeu o crime.
Mesmo após sua vida ficar completamente abalada, Damiana ainda consegue fazer ponderações sobre o algoz que contribuiu para a morte de sua filha de consideração. “Aquela pessoa que todo mundo ali condenou, ele era mais um. Ele fazia com a gente o que ele aprendeu, que era a tortura. Porque essa era a forma dele ver a vida como ele viveu”, considera.
Quatro anos sem andar, seis sem falar
O AVC fez Damiana perder os movimentos do lado esquerdo do corpo e, por causa do trauma, ela também perdeu a voz. Ela passou os quatro anos seguintes à tragédia praticamente sem sair de casa, sem andar nem falar e em profunda depressão.
Só depois do nascimento de sua neta, seis anos após o 174, que ela começou a se recuperar. “Minha neta é especial, teve vários problemas de saúde depois de nascer. Eu via que enquanto ela lutava para viver, eu lutava para morrer. Isso me deu força para mudar a situação”, garante. Outro acontecimento inesperado foi sua participação no quadro “Agora ou Nunca”, do programa do Caldeirão Huck, onde ela encontrou o cantor Fábio Jr. no camarim.
“Eu não ganhei o prêmio do programa, mas as palavras que o Fábio Jr me disse ajudaram muito. Ele disse que eu tinha que me perdoar pelo que tinha acontecido, que a culpa não era minha, que eu deveria lutar contra tudo aquilo. Ele disse que estava torcendo por mim, pra eu voltar a falar e andar. Isso me deu muita força”, relata.
O policial que atirou em Geisa foi levado a júri popular e absolvido. A tragédia ficou tão marcada na memória da população que pouco mais de ano após o sequestro, a linha 74 mudou de número, passando a se chamar 158.
Marcelo Urso tinha 13 anos na época e é sobrinho de um dos passageiros que conseguiu descer do ônibus antes de Sandro anunciar o sequestro. Ele lembra que o dia foi bastante tenso na Rocinha e que o clima ruim ainda durou bastante tempo. “Lembro de passar pelo Parque Lage três dias depois, ver no pé de uma árvore um mar de flores e de ouvir uns sussurros dentro do ônibus. Depois disso, veio um silêncio emocionante. O tempo que nós ficamos parados no trânsito ninguém falava nada, as pessoas apenas olhavam aquela árvore”.
Durante muitos anos o dia 12 de junho foi uma data que deixava Damiana com raiva, mas hoje ela garante ter superado. “Eu passei muito tempo com raiva do dia 12, mas agora eu começo a olhar de outro jeito. É uma data que eu não quero esquecer, quero que ela seja lembrada não só pela tragédia do 174, mas como uma lição de vida de uma grande mulher que foi Geisa”. E ainda faz outro apelo “”Espero que nesse dia 12 a sociedade preste atenção em quantos Sandros tem na rua”.
A sobrevivente ainda vive na Rocinha, com algumas sequelas, mas recuperada do pior. “Assim eu estou levando minha vida, fiquei com várias sequelas, não posso sair sozinha. Se eu fico no meio de um tumulto eu me perco, não consigo atinar onde estou, então isso me deixa um pouco limitada. Mas com a graça de Deus estou eu aqui”. Mesmo comovida depois de contar sua história, ela ainda faz piada. “Agora é assim, eu fiquei tantos anos sem falar que quando eu começo a falar só Jesus”, diverte-se.
(Texto: William de Oliveira | Fotos: Divulgação)