“Não temos as respostas para todas as questões sobre o tema das drogas, mas eu não tenho dúvida de que a estratégia dos consultórios de rua é o melhor modelo que existe”, declarou o Secretário Estadual de Saúde, Sérgio Côrtes, na manhã do dia 17 de dezembro, durante a abertura do seminário internacional “Saúde e Política de Drogas: é preciso mudar”. “Precisamos fazer com que o usuário acredite que existe uma luz no final do túnel. O primeiro passo para isso é entender que estamos lidando com um tema da área de Saúde”, acrescentou.
O Secretário explicou que a discussão sobre as drogas ainda está mais vinculada à esfera da Segurança do que da Saúde porque o uso do crack, droga que potencializou a preocupação e a discussão sobre o tema, está muito associado à violência na nossa sociedade. No entanto, outras drogas, inclusive algumas lícitas, como o álcool, trazem tantos ou ainda mais danos à sociedade, lembrou o Secretário: “O crack não é o único problema que precisamos enfrentar dentro da temática das drogas, mas nós devemos aproveitar a agenda do Ministério da Saúde e do Governo Federal para discutir o tema das drogas como um todo e trazer para esse debate a saúde mental e a assistência básica para pensar melhores maneiras de enfrentar o problema das drogas e acolher o usuário”.
Também presente à mesa de abertura do seminário, o presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), Paulo Gadelha, defendeu que o tema das drogas deve ser pensado de maneira holística, integrando diferentes atores da sociedade. “As experiências no Brasil e no mundo mostram que é preciso mudar, deslocar a abordagem do tema para a área da Saúde. Manter a discussão exclusivamente na esfera da Segurança é ruim para a polícia, para o usuário e para a sociedade como um todo. Se não tivermos a disposição para envolver a sociedade como um todo neste debate, não conseguiremos abordar o tema de maneira clara, transparente e desassombrada”.
Ele ressaltou a responsabilidade da Saúde no debate. “A Saúde não pode ser tímida no debate sobre as drogas. A discussão passa pela questão da legislação e os profissionais de Saúde precisam participar ativamente deste debate e se envolver com outras áreas”. Gadelha lembrou o caso da estratégia de redução de danos em relação ao HIV, no qual o Brasil é referência mundial. “Temos uma tradição muito forte no campo da Saúde de enfrentar questões complexas. Precisamos lembrar que as nossas representações e decisões sobre o que é certo ou errado, o que deve ser proibido ou não são escolhas políticas e que, no caso das drogas, não há evidências científicas que mostrem quais drogas devem ser ilícitas e quais podem ser lícitas”. Ele citou o exemplo do álcool: “Apesar de ser uma droga lícita, o álcool é responsável por muito mais casos de mortes, acidentes de trânsito, aposentadorias, internações e violência do que drogas consideradas ilícitas”.
O diretor do Viva Rio, Rubem César Fernandes, também participou da abertura do seminário. Ele lembrou que, apesar de no Brasil e em outros países da América Latina a questão criminal dominar as discussões sobre drogas e acabar ofuscando a área da Saúde, devido à associação das drogas à violência na região, esse cenário começa a mudar. “Já estamos em um processo de mudança. Com a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, por exemplo, a saúde começa a entrar no debate e absorver a demanda de atenção. Os desafios são vários. O apoio da Saúde Pública ao setor privado e às comunidades terapêuticas é um deles. O maior de todos os desafios é a transferência do debate do sistema penal para a Saúde. Mas não basta uma mudança da lei, é preciso uma mudança de cultura, de espírito, de abordagem”.
Boas práticas internacionais ajudam a abrir o horizonte da discussão
Na primeira mesa do seminário, o Painel Mundo, foram apresentadas as experiências bem sucedidas de regulamentação da maconha no Uruguai, da descriminalização do uso de drogas em Portugal e de combate ao crack no Canadá, com o objetivo de ajudar a pensar soluções locais e trilhar um caminho próprio num contexto em que o consenso da proibição e a utopia de erradicar as drogas fracassaram.
O vice-Ministro da Educação e Cultura do Uruguai, Oscar Gómez da Trindade, apresentou a proposta de regulação do mercado da cannabis no país. “Não defendemos o uso de drogas, mas não queremos que os jovens sejam reféns do narcotráfico. E, para isso, a regulação do mercado de cannabis é central”, explicou. Diante das evidências do fracasso do paradigma da “guerra às drogas”, o governo federal do Uruguai criou a Junta Nacional de Drogas (JND), um organismo de caráter interministerial que define as linhas políticas de ação em relação ao problema das drogas, com o objetivo de preservar a vida e a saúde e promover a convivência e o desenvolvimento.
“Com a palavra ‘arma’ nós podemos designar uma pedra, uma faca, uma escopeta e até mesmo uma bomba atômica. Mas elas não podem ser tratadas da mesma maneira”, defendeu Oscar. E concluiu: “No Uruguai, nós assumimos os riscos da iniciativa e vamos evitar que a caricatura nos impeça de ver o retrato da realidade. O propósito da nossa iniciativa é a promoção da saúde, a educação, a gestão de riscos e a redução de danos”.
A representante do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências de Portugal (SICAD), Paula Marques, apresentou a experiência da “nação inspiradora” do Brasil para repensar a política de drogas. Além de ser baseado nas vertentes da prevenção, tratamento, reinserção, redução de danos e dissuasão, o modelo português de descriminalização, adotado há mais de 10 anos, baseia-se nos princípios do humanismo e do pragmatismo.
O ponto principal, de acordo com Paula, é considerar o dependente um doente, e não um criminoso. “A partir daí é possível a abertura à inovação, a libertação de dogmas e ideias preconceituosas. Mas para isso é necessário ter a ousadia de adotar medidas como a distribuição de seringas e metadona nas farmácias, a fim de reduzir os danos”, explicou.
Os bons resultados, ressaltou, devem-se a uma reorientação estratégica e a um conjunto de respostas integradas: “Trata-se de uma política de grandes investimentos da sociedade como um todo, tanto do governo como de organizações não governamentais, por exemplo. E é uma medida que só tem mostrado resultados positivos porque acreditamos que era possível mudar e manter a mudança”.
O especialista em saúde pública da Universidade Simon Fraser, no Canadá, Benedikt Fischer, destacou as semelhanças entre a política de drogas no Canadá e no Brasil em sua apresentação: “Assim como no Brasil, o crack também é um grande problema no Canadá. E nós também vivemos uma situação esquizofrênica, de uma Lei de Drogas muito antiga que criminaliza o usuário e tornam-se barreiras para ações de saúde”.
Ele apresentou a experiência de algumas cidades do Canadá onde há 20 anos começou-se a perceber que a repressão não resolvia nem contribuía para a solução do problema. Os centros de consumo seguro (SCS – Safe Consumption Sites), locais para uso seguro de drogas injetáveis, são um exemplo do investimento em estratégia de redução de danos. “Certamente foi uma medida que causou muitas críticas, mas ela se mostrou uma ferramenta de contato importante com os dependentes. Nesses locais, além de reduzir o uso inseguro de drogas e os casos de overdose, os profissionais de saúde têm a oportunidade de se aproximar e estender a mão para ajudar os dependentes”.
Caso semelhante aconteceu com a criação dos kits de uso seguro de crack. “Esses kits são distribuídos não com o objetivo de incentivar o uso de drogas, mas de ajudar o usuário a fazer um uso mais seguro da droga, assim como evitar contaminações, acidentes e, sobretudo, salvar vidas”. De acordo com Fischer, a crise do crack no Brasil deve ser encarada como uma oportunidade para pesquisar novas estratégias de abordagem do usuário. “Os problemas que estamos enfrentando não são consequência natural do uso das drogas, mas de um sistema falido de controle do uso dessas substâncias, que acaba funcionando como combustível para o problema. E isso é uma questão de opção social e política. Precisamos mudar o sistema, adotar uma política que aceite o usuário como uma questão de saúde para melhorar este cenário”.
Seminário continua
As palestras e mesas de debate continuaram na parte da tarde do dia 17, com apresentações de boas práticas brasileiras. No dia 18, os participantes serão divididos em seis grupos de trabalho para debater diferentes aspectos relacionados ao atendimento do usuário nos três níveis de atenção à saúde: primário (com foco na promoção, prevenção e reabilitação da saúde), secundário (mais especializado e de maiores níveis tecnológico e de complexidade) e terciário (de alto nível tecnológico e de complexidade). No final do encontro, os grupos de trabalho se reunirão para elaborar um relatório com propostas para a construção de novas práticas de saúde.