No livro “Rocinha em Off — Histórias que a mídia não soube, não pôde ou não quis contar”, Carlos Costa revela os bastidores da delicada relação entre as lideranças comunitárias e o poder paralelo na Rocinha, desde a década de 1970. Costa, coordenador de Articulação de Redes Sociais do Viva Rio, foi presidente da Associação de Moradores do Laboriaux, na Rocinha, e tem um histórico de 30 anos de liderança comunitária.
O romance autobiográfico conta a história de Tilinho, um garoto pobre nascido e criado na Rocinha, filho adotivo de uma mineira alcoólatra e um paraibano analfabeto e que, ainda na escola, começou a desenvolver o gosto pela liderança, organizando e comandando os estudantes.
Em pouco tempo Tilinho torna-se um líder comunitário. A trajetória do protagonista tem como pano de fundo os bastidores dos jogos de poder envolvendo líderes comunitários, grandes nomes do crime organizado, políticos e representantes dos mais diversos setores da sociedade, trazendo à tona casos que não saíram na mídia e que os próprios moradores desconhecem.
Formado em Jornalismo, Carlos trabalha no Viva Rio desde 1999. Coordenou a área de Mediação de Conflitos Urbanos, o projeto Resgate e o projeto de inclusão social de jovens Protejo Maré e São Gonçalo. Atualmente, coordena ações de mediação e de socialização de jovens em conflito com a lei, atua na mídia comunitária e junto a moradores de áreas vulneráveis.
Você acredita que as favelas são excluídas da pauta de discussão da grande mídia?
As histórias que a mídia não contou – não soube ou não quis contar – ficam restritas às entranhas das favelas e muitas vezes os seus próprios moradores nem chegam a tomar conhecimento delas. Mas isso acontece em todos os espaços da sociedade. Não se trata de exclusões. O livro não trabalha com a teoria da conspiração, mas sim com a variedade dessas situações e acontecimentos.
Você acha que a visão da sociedade em relação à Rocinha é limitada e estigmatizada?
Esse é o olhar da sociedade sobre a favela em geral, não apenas sobre a Rocinha. As pessoas acham que todos se subordinam e comungam uma obediência cega aos que de alguma forma exercem a opressão ou o poder, sejam eles traficantes, milicianos, padres, pastores, policiais ou presidentes de associações de moradores. É comum as pessoas imaginarem que os moradores das favelas pensam e se comportam de maneira igual. As pessoas que vivem ali são diferentes, fazem escolhas a partir de seus próprios interesses e percepções.
No período abordado pelo livro, o posicionamento da mídia e da sociedade em relação às favelas mudou?
Não sei se dá para comparar ou para dizer que a mídia mudou pra melhor. Acho que hoje a banda toca de outro jeito. A favela não precisa mais da mídia oficial para se retratar, esclarecer, pontuar ou defender suas ideias e ideais. A comunicação e a informação deixaram de ser privilégio de meia dúzia e passaram a estar ao alcance de todos. Antes mesmo da explosão das redes sociais a favela se apropriou do direito à comunicação e começou a fazer ela mesma os seus impressos e programas radiofônicos e televisivos.
A mídia formal teve que vir atrás, se aproximar, entender e aprender a trabalhar um pouco mais e melhor o universo da comunicação popular. E a favela, por sua vez, aprendeu a se defender dos rótulos, da violência e do preconceito, mostrou potencialidade, crescimento, desenvolvimento e criatividade. Em novembro de 2010, enquanto todo mundo ligou na TV Globo pra ver o “massacre do Alemão”, foi através de um notebook e uma câmera fotográfica do René Silva e outros moradores locais que se viu a ação policial, os seus bastidores e a reação da população. Foi um fato inédito.
Você tem 30 anos de atuação comunitária na Rocinha. O que destacaria dessa trajetória?
O aprendizado, o crescimento como pessoa e principalmente ter aprendido a jogar o jogo das relações e da disputa pelo poder, dentro e fora da favela. Eu aprendi a sobreviver e me manter por cima mesmo nos momentos de fracasso e derrota.
Você acha que conseguiu chegar ao topo da representação comunitária?
Isso não existe. A representação comunitária se dá pela intercessão de uma série de atores, situações e objetivos, além de alianças estratégicas bem articuladas e posicionamento crítico pró-ativo. A figura que se destaca a ponto de se tornar uma referência nesse âmbito só o faz com o apoio de um grupo, uma equipe.
Relembrando as histórias do seu período de militância na Rocinha, qual você diria que foi a mais marcante?
Eu destaco a “guerra” de 2004/2005. Até hoje existem marcas, traumas.
No livro, você diz que o ano de 2004 foi o “mais quente” da Rocinha. Por quê?
A guerra e a busca da paz pelas lideranças locais e pela sociedade carioca, da Zona Sul especificamente, pautaram os noticiários locais e internacionais e teve sérias consequências inclusive econômicas para toda a região da Rocinha e entorno. Foi uma época de repactuação de valores, olhares e atitudes.
Esse momento corresponde ao início do período em que você ocupou o cargo de presidente da Associação de Moradores do Laboriaux, na Rocinha, de 2004 a 2007. Quais foram os principais desafios que você enfrentou nesse período?
Como presidente, meu principal desafio foi delimitar o meu campo de atuação, o meu papel e também o de outros setores, sobretudo do poder público e do tráfico de drogas. Isso tudo na base do “água e óleo não se misturam…”, ou ainda, do “cada macaco no seu galho”.
Eu orientava, determinava, autorizava, implementava e mobilizava dentro da minha instância de poder e representação. Os demais setores faziam o mesmo, em harmonia, mas também com autonomia. Até o dia que alguém tentou quebrar essa regra. Aí eu entreguei as chaves e a associação está lá abandonada e fechada até hoje.
A disputa de poder sempre foi uma constante na comunidade?
Mais uma vez faço questão de “desterritorializar” essa questão. A disputa pelo poder é universal e igualmente pesada, seja no Oriente Médio ou na França, nas eleições presidenciais nos Estados Unidos ou na Associação de Moradores do Vidigal. É justamente sobre isso que eu falo, partindo dos exemplos da Rocinha.
Você acha que o processo de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) está mudando (ou vai mudar) a dinâmica das lideranças comunitárias?
Não diria nem que está mudando nem que vai mudar. Mas acho que está na hora de combinar os papéis e as formas de jogar. Quando os líderes comunitários reclamavam da polícia que só prendia, eles não estavam dizendo que queriam que um comandante de unidade assumisse o papel de porta voz da comunidade – ou pior, que ele passasse a ter a última palavra, substituindo o antigo mandatário. A dinâmica está em fase de mudança e a pergunta é: para qual direção?