Treinamento, disciplina e força de vontade são essenciais para a construção de um atleta de alto rendimento. Não importa a idade, o esporte pode resgatar sonhos e salvar o relacionamento familiar, como ocorreu com os adolescentes João Gabriel Estácio, 13, e Bernardo Gomes, 15. Há um ano, ambos participam do Faz Paz, projeto de artes marciais criado pelo Viva Rio na Casa de Cultura Milton Santos, no Complexo da Penha, que tem o objetivo de promover hábitos saudáveis através das artes marciais, além de priorizar a educação, incentivar a cidadania e a socialização entre os participantes.
Nervosos, desconfiados e acanhados, os meninos não queriam ser o centro das atenções por estarem desacostumados com os holofotes, perfil comum na região que muitas vezes só é lembrada por episódios negativos que envolvem violência e a falta de recursos. Mas, apesar da timidez, o olhar denunciou as marcas da mudança causadas pelas artes marciais.
O ingresso no projeto foi um divisor de águas para Gabriel, mas nada comparado à primeira medalha de ouro, conquistada no Campeonato Estadual de KickBoxing, 28 de setembro de 2014, dia do aniversário de sua mãe. Na ocasião, ainda emocionado com a conquista, a primeira reação do menino foi ligar para a mãe. “Ficamos os dois chorando no telefone, pois não esperava que fosse ganhar por ser a primeira luta e por que eu estava muito nervoso”.
A vitória aproximou pais e filho. “Ela me incentiva muito a participar do projeto e fala que quer me ver no UFC”. Desempregado, o pai de Gabriel, Leandro Estácio, sempre o acompanha nos treinos. “Para nós é importante que ele se envolva com atividades desse tipo, pois trabalham disciplina, solidariedade, respeito e hombridade”.
Leandro afirma que Gabriel melhorou o desempenho dentro e fora do tatame. “Ele está mais interessado em ajudar ao próximo e melhorou a sua nota na escola”. O estudo é importante para a família, que deixou claro que as notas teriam que ser boas para que ele pudesse treinar.
Ídolos
Mais emocionado dos atletas, Gabriel lembra com um largo sorriso e olhos cintilantes dos tempos em que ficava assistindo as lutas de Mixed Martial Arts (MMA – Artes Marciais Mistas) na TV, principalmente quando um de seus ídolos entrava no octógono. Ele admira José Aldo, campeão dos penas do Ultimate Fighting Championship (UFC); Anderson “Spider” Silva, ex- campeão do peso médio do UFC, que disputa as seletivas do taekwondo para Rio-2016; e Lyoto Machida, ex-campeão meio-pesado da mesma competição.
“Eu grudava na TV e não saia de perto até as lutas terminarem”, lembra. Um dos maiores sonhos de Gabriel é conhecer seus ídolos. “Nossa! Se isso fosse possível iria abraçá-los e perguntar o que preciso fazer para ficar igual a eles. Já até pensei e planejei o que faria nesse momento”.
A ginga e a explosão que Gabriel revela no tatame lembram um atleta conhecido no universo das artes marciais, seu parente distante, Leandro Ataides, lutador profissional de MMA do One FC, competição da Ásia. O jovem não tem muito contato com Ataides por conta dos milhares de quilômetros de distância, mas sempre falam sobre disciplina esportiva e postura fora do tatame.
Embora morem perto e compartilhem da mesma paixão pelos treinos, os sonhos dos meninos são bem diferentes. Ser lutador profissional é o único objetivo de Gabriel, enquanto Bernardo Gomes prefere ser caminhoneiro ou engenheiro da computação. Ambos, porém, compartilham do mesmo discurso: “O esporte mudou nossa vida”.
Para além do sonho, uma questão de saúde
Mesmo que não sonhe com os holofotes do esporte, Bernardo tem consciência de que começar a praticar o KickBoxing pode ter salvo sua vida, além de aproximá-lo da mãe. “Eu era estressado e estava muito ‘gordo’, então minha mãe me disse para me inscrever. Com o passar do tempo, depois que cheguei aqui fui aprendendo e comecei a ficar mais calmo”.
Bernardo não lembra bem o peso que tinha quando entrou para o projeto, mas tem certeza que, aos 13 anos, a balança ultrapassava 100 quilos. O adolescente também participou do Campeonato Estadual de KickBoxing e ganhou a medalha de ouro por Walkover (falta de oponente).Os treinos são realizados no horário contrário ao das obrigações escolares dos meninos, que cursam o 8º ano em escolas da região.
Para o professor de KickBoxing do projeto, Fernando Barbosa, o esporte é uma ferramenta importante na construção do caráter de um jovem. “Nas comunidades carentes, age como incentivo para que eles não entrem na vida errada. Aqui (na Casa de Cultura), os jovens abandonaram a ideia de que ser “bandido” é legal, pois criam novos objetivos e se empenham em conquistá-los”, avalia.
Fernando explica que o Faz Paz ensina mais do que técnicas de luta. “Aqui eles aprendem a ter respeito pelo outro, disciplina, hierarquia e como se comportar na sociedade. Os alunos passam a entender que o mundo não é só aquela realidade difícil que eles vivem. Que com empenho e dedicação podem mudar de vida”, conclui.
(Texto: Flávia Ferreira | Foto: Vitor Madeira e Paulo Barros)