“Desculpe se te fiz esperar tanto. Chegou uma jovem grávida e tive de atendê-la.” Daili Medina, 38 anos, é daquelas pessoas que não conseguem parar de sorrir. Seu bom humor permanece mesmo após 20 pacientes passarem por seu consultório no Centro Municipal de Saúde (CMS) Samora Machel, situado no Complexo da Maré. “Segunda-feira costuma ser movimentado, mas hoje bateu todos os recordes”, diz, evidenciando um leve sotaque hispânico.
Nascida na província de Santiago de Cuba, Daili veio para o Brasil em 2013, depois de sido selecionada pelo Programa Mais Médicos. Ela e mais 37 profissionais do país insular foram responsáveis pelo aumento de 30% no número de médicos nas equipes multidisciplinares e contribuíram para o incremento de aproximados 10 pontos percentuais na cobertura da Estratégia de Saúde da Família da Área Programática (AP) 3.1 nos últimos dois anos. Composta por 28 bairros da Zona Norte do Rio, a região é considerada uma das mais vulneráveis da cidade, abrangendo, além da Maré, todo o Complexo do Alemão.
Quando decidiu fazer as malas e cruzar a América Latina, a cubana não fazia ideia do que a aguardava. “Pensei ‘pronto, vão me mandar para a Amazônia’. Desconhecia as favelas do Rio de Janeiro”, lembra, contando que ficou impressionada com as “casas construídas de maneira amontoada, umas em cima das outras”. Atuar em territórios inóspitos, entretanto, não era uma novidade na vida de Daili. Após trabalhar por três anos no interior da ilha, ela partiu em missão a Carabobo, norte da Venezuela, onde viveu por outros cinco. “Eu e meu marido fomos selecionados – eu, como generalista, e ele, como fisiatra. A carência de profissionais era tremenda, mas contornamos o problema.”
No CMS Samora Machel, mais de 3.450 pacientes estão sob os cuidados de Daili. E, embora o foco da unidade seja a saúde preventiva, a grande demanda reprimida por médicos faz com que casos emergenciais também façam parte da rotina da cubana. “Câncer de pulmão nunca antes descoberto, níveis de glicose tão altos que o medidor não conseguiu aferir… Até tuberculose na faringe, detectei aqui”, recorda.
Mais Médicos: entre avanços e polêmicas
O Programa Mais Médicos chega a 2015 com mais de 14 mil profissionais espalhados por 3.785 municípios e 34 distritos indígenas.
A iniciativa, porém, está bem longe de ser uma unanimidade dentre a classe médica. E isso se reflete nos números: embora tenham prioridade nos processos seletivos do Mais Médicos, os profissionais formados no país ocupam apenas 1.846 vagas.
“No Brasil, o médico tende a sair da faculdade pensando na especialização ou no trabalho de hospital. Raros são aqueles que voltam-se à atenção primária”, explica o coordenador-geral da Área Programática 3.1, Leonardo Graever.
Os médicos cubanos cadastrados no programa, por outro lado, ultrapassam os 11 mil. Segundo Leonardo, muitos já vem com vasta experiência em medicina de família, acumulada desde os tempos de graduação. “O olhar epidemiológico dos cubanos costuma ser bem apurado. Eles entendem o impacto da doença no território. Além disso, a maioria vem com um ‘espírito missionário’, então é raro haver dissidências, até em territórios mais complexos.”
Prova única
Thais Ranzani, médica voluntária da ONG Teto, considera o Mais Médicos uma medida importante para aplacar a deficiência de médicos no interior, mas faz ressalvas. “Brasileiros e estrangeiros deveriam passar por uma prova única. Até para evitar controvérsias em relação à validação de diplomas.”
Ela também se mostra contrária o aumento de vagas de medicina nas universidades, proposta correlata ao programa e parte do pacote de reformulação da saúde do Governo Federal. “Na Ufrj, onde estudei, entram 100 alunos por semestre. Nosso hospital é precário. Há capacidade para 400 leitos, mas só temos 120. Não possuímos uma emergência. Se falta estrutura para o atual corpo discente, imagina se aumentar”, avalia.
Com o próximo edital dos Mais Médicos, a previsão é de que o número de profissionais cadastrados vá além dos 18 mil emais de 63 milhões de pessoas sejam beneficiadas em todo o país. O novo processo seletivo revela uma novidade: pela primeira vez desde a criação do programa, 95% das vagas da chamada inicial foram preenchidas por médicos formados no Brasil.
(Texto: Karla Menezes/Foto: Paulo Barros)