Para a magistrada, a sociedade tem dificuldade de entender que o álcool ou o tabaco também são substâncias tóxicas e causam riscos à saúde, apesar de lícitas. “O pai reprova o filho quando encontra um cigarro de maconha em sua bolsa, mas aplaude o primeiro porre.” A diferença de tratamento atribuído aos produtores e consumidores de alucinógenos, de acordo com Karam, fere o princípio da isonomia, no qual todos são iguais perante a lei. “E essa incongruência acaba, no fim, elegendo como alvos os mais vulneráveis, pobres, não brancos e desprovidos de poder”, completou.
A partir do raciocínio da juíza, o delegado e também membro da LEAP, Orlando Zaccone, propôs uma discussão criminológica a respeito da definição de usuário e traficante. Segundo ele, tais conceitos não se encontram no Código Penal, estando relacionados à construção social que se faz a respeito de cada indivíduo. “O artigo 281, vigente antes de 1976, não fazia distinção entre quem usa e quem vende drogas ilícitas. Quando, na Lei 6368/76, a teoria da diferenciação começou a ser discutida, entraram em vigor os estereótipos dos dois grupos”, explicou.
Munido de dados da própria Polícia Civil, Zaccone analisou os bairros cariocas que apresentaram mais flagrantes de tráfico no ano de 2005. Bangu foi o primeiro da lista, com 186 registros, seguido por Santa Cruz e Bonsucesso. Ipanema, por outro lado, fez nove. A Barra de Tijuca, maior surpresa da relação, obteve apenas três ocorrências. “Esses números mostram que, quando construímos socialmente as leis, o sistema tende a apontar culpados de maneira injusta.”
Um dos momentos mais contundentes do seminário foi protagonizado pela delegada Valéria Aragão e pela juíza Maria Lúcia Karam, no debate aberto posterior ao primeiro painel. Após afirmar ser contrária à descriminalização das drogas, a policial argumentou que a flexibilidade na lei iria de encontro à proteção da saúde coletiva e permitiria o maior acesso de crianças e adolescentes a entorpecentes. Incisiva, a magistrada respondeu que, ao tentar resolver o problema através da proibição, o Estado acaba por piorá-lo e causar mais danos à saúde. “Legalizar é controlar, regular e devolver ao Estado o direito de fiscalizar a produção das drogas agora ditas ilícitas.”
Ainda segundo a juíza, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos mostrou que 99% continuariam sem usar heroína e cocaína mesmo se estas fossem liberadas. “A tese de que a legalização aumentaria o consumo não tem nenhuma conexão com a realidade.”
A delegada, então, replicou que o custo social e emocional do combate às drogas tem provocado o surgimento de “teoria simplistas e radicais” sobre descriminalização e legalização. “Não está claro como isso seria operacionalizado. Se tudo fosse liberado, quem poderia comprar? Adultos? Mas e esse adulto passasse para uma criança? A limitação por dose também seria um problema. E se o dependente quisesse mais quantidade? Recorreria ao mercado negro?”, questionou.
“Policial também é vítima da falida guerra às drogas”
“A corporação está doente”, repetiu o psiquiatra e diretor do Hospital Central da Polícia Militar, Coronel Sérgio Sardinha, várias vezes durante sua palestra. Para ele, a pressão em cima dos policiais, agravada pelas operações de combate às drogas, tem transformado os próprios funcionários em dependentes.
Sardinha defendeu maiores investimentos em saúde e bem-estar do profissional para que este tenha sua autoestima elevada e possa desempenhar melhor suas funções. O médico, então, mencionou uma tese de mestrado que pesquisou na qual mostrava a visão dos filhos dos policiais a respeito do ofício de seus pais. “Perguntaram às crianças o que os pais delas faziam e a resposta que mais apareceu foi: ‘eles matam gente’. O policial já foi aquele que salvava pessoas. Mas, com essa guerra, a visão mudou.”
Já o inspetor civil Francisco Chao revelou que passou a ser a favor da descriminalização das drogas quando percebeu que colegas seus estavam morrendo em um conflito que “não valia a pena”. “Eu apoio o uso de nenhuma espécie de droga. Mas essa guerra não é boa para ninguém e não está sendo ganha”.
Ao ouvir a diretora da Acadepol, Jéssica Oliveira, defender que o seminário propiciou à Polícia a oportunidade de abordar uma “agenda oculta”, ele afirmou se tratar, na verdade, de uma “agenda não enxergada”. “A gente finge que não sabe que o confronto é feito de maneira não científica. Com saco na cabeça, cabo de vassoura e tudo aquilo que é aplaudido quando visto no ‘Tropa de Elite’, mas criticado quando invade a realidade. No fim, policial acaba sendo o jagunço”, concluiu.
O seminário também contou com a participação do subchefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Sérgio Caldas; o comandante da Academia de Polícia Militar, Coronel Íbis Silva Pereira; o delegado da Delegacia de Combate às Drogas – DCOD, Alexandre Magalhães; o ex-comandante geral da Polícia Militar e coordenador de Segurança Pública do Viva Rio, Coronel Ubiratan Ângelo; o perito legista da Polícia Civil, Marcio Gekker; e o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas – FGV, Pedro Abramovay.