Foram muitas as reações de familiares e amigos ao saber da minha decisão, mas a da minha mãe foi a mais impagável. Ao ouvir que eu iria pedir demissão (sou jornalista e estava havia 13 anos na Folha de S.Paulo) para ficar um mês no Haiti, a resposta foi: “Onde? Pro Taiti? Pro Havaí?” Não, mãe. Era pro Haiti mesmo. Aquele país sempre descrito pela miséria e pelo abandono e que foi destroçado por uma sucessão de golpes, ditadores, epidemias e desastres naturais.
Hoje, já de volta ao Brasil, afirmo: foi a melhor coisa que eu fiz nos últimos tempos. Fiquei 37 dias no país caribenho, e poder ver a realidade difícil de pessoas que não conseguem ter ideia de futuro porque futuro não é algo lá muito presente em suas vidas é, apesar do clichê, uma lição. Convivi com brasileiros que fizeram o que eu fiz, mas por tempo indeterminado. Pessoas que viram no país mais pobre da América a chance de recomeçar suas vidas ou de dar início à sua carreira profissional. Conheci haitianos que têm a certeza de que o país vai melhorar – e que colaboram com isso -, mas também tive contatos com aqueles que não acreditam mais em seu país e só pensam em sair de lá.
Vi realidades que já fizeram parte do Brasil, mas hoje felizmente estão no passado, como as crianças desnutridas severamente ou sem acesso a vacinas. Vi, por outro lado, cenas que ainda fazem parte das vidas dos brasileiros mais pobres, como a falta de saneamento básico, de hospitais públicos e a questão da sujeira em ruas e rios. Falei do trânsito? Esse é um capítulo à parte. Mas vou resumir: lá, a lei é uma só – pé no acelerador e mão na buzina.
Morei nas dependências da Academia de Futebol Pérolas Negras, em Croix-des-Bouquets, e convivi com toda a equipe técnica, o staff e os atletas; visitei a escola de capacitação de turismo em Arcahaie; em Porto Príncipe, acompanhei o trabalho dos funcionários da parte administrativa do Viva Rio, visitei a Ilha Verde e, em Kay Nou, fiz um tour por todos os projetos, mas me detive mais às aulas de dança e capoeira.
Acompanhada do Jude, “prefeito” de Kay Nou, visitei o Marchant Croix-des-Bossales, e me impressionei tanto com a extensão e a quantidade de vendedores como com a situação das pessoas que circulam por lá, geralmente muito pobres, com a falta de higiene na cozinha e do… hum, “açougue” a céu aberto. Não é à toa que esse mercado, que já serviu para a venda de escravos, é conhecido pelos militares brasileiros que servem no Haiti como “cozinha do inferno”.
Saí do Brasil com a ideia de ajudar os atletas da academia com aulas de português, mas, como nossa língua não está no currículo deles, me voltei à minha área, e colaborei com o site de turismo do Viva Rio no Haiti, ainda em desenvolvimento. Paralelamente, encaminhei matérias para a Folha, e essas duas atividades me deram a chance de conhecer muito do país.
Fiz, por exemplo, patrulhas com os militares. Em uma delas, participei de uma ação cívico-social em que a missão da ONU ofereceu atendimento médico, distribuiu água e comida, brincou com crianças e, no fim, fez apresentação de capoeira e de um filme ao ar livre numa praça de Citè Soleil, em Porto Príncipe. Na segunda patrulha, fui até o Forte Nacional, que foi destruído com o terremoto, ao porto de Wharf Jeremy, visitei uma escola e uma oficina de costura e artesanato e dois campos de deslocados de Citè Soleil, sendo que em um deles, Tap Vert, encontrei reunido o pior de tudo o que vi no Haiti: não há luz (nem gato) nem água, quase todos estão sem trabalho, nenhuma criança vai à escola, e o acerto entre Minustah e governo é o de que, enquanto eles estiverem ali, não haverá mesmo nenhum benefício, já que estão em situação “provisória”, e olha que isso há mais de três anos. (Não há previsão de quando eles sairão de lá. Os moradores, assim como eu e você, estão esperando um aceno do governo haitiano desde o terremoto, em 2010). Conheci também o trabalho das freiras brasileiras no acampamento Corail, que tem como foco gerar renda e desenvolver a economia solidária.
Você não pode estar no Caribe e não ir às praias, certo? Até porque concordo que o turismo é uma das chaves para o desenvolvimento do país, como dizem os analistas e quem conhece a situação haitiana. Fui à região de Côte des Arcadins, a 40 minutos de Croix-des-Bouquets, em que se paga US$ 20 em um hotel para passar o dia à beira-mar com estrutura de resort, e também em Cormier Plage, no Cabo Haitiano, ao norte do país, em que paguei US$ 5 para ficar numa praia linda, calma e tranquila, também utilizando a estrutura de um hotel. Preferi não ir à Labadee, vizinha à praia exclusiva e famosa da Royal Caribbean, porque não era exatamente esse tipo de passeio que estava procurando. E não me arrependo: Cormier Plage é daquelas praias vazias, com areia branca e fina e mar com vários tons de azul que a gente imagina quando pensa em paraíso.
Ah, sim: antes de viajar, aproveitei que moro em São Paulo e usufruí do “médico do viajante”, um centro de atendimento oferecido pelo SUS no Hospital Emilio Ribas. O médico me atendeu muitíssimo bem, era bem informado sobre o Haiti e me deu várias orientações, como os cuidados que eu deveria ter com a água e a comida, além de uma lista de seis vacinas para tomar, a saber: sarampo, febre amarela, febre tifoide, antirrábica, hepatite e antitetânica. Aliás, um recorde: nos 37 dias de Haiti, não tive nenhuma diarreia – estar atento à água que se bebe e aos lugares onde se vai comer é a chave desse “sucesso”.
Ouvi no Haiti a melhor versão da música-chiclete “Ai, Se Eu te Pego”. A maioria deles entende assim o refrão: “Melíssia, Melíssia, assim você me mata”, que cantam sempre, sempre e de novo, com coreografia e tudo. As crianças adoram também, e foram elas que mais me impressionaram, sem dúvida. Carentes, mas cheias de alegria, são sempre as primeiras a receber os visitantes. Pedem dinheiro e chocolate, sim, mas também querem colo, um sorriso, um abraço. E como gostam de tirar fotos… Dançam, posam, desfilam, fazem caretas.
Difícil, depois de brincar tanto com elas, foi saber o que dizer ao ouvir de uma mãe adolescente a seguinte proposta: “Você é brasileira? Vou buscar meu bebê e você leva com você…” Não, não trouxe o bebê e espero que ele tenha um futuro digno. Mas comigo vieram muitas histórias, muitas memórias e muitas, muitas fotos, que vou sempre ter o maior prazer de exibir por aí.
Artigo escrito pela jornalista Paula Lago