Bem adaptados, haitianos são feras no batente

26/9/2016

Eles têm em comum a capacidade de se esforçar, de abraçar o trabalho com empenho e eficiência, além da boa vontade e simpatia contagiantes. Quem encarna 100% desta descrição é a haitiana Marie Florence Thelusma, 27 anos, nascida na capital, Porto Príncipe. Além de conquistar elogios do chefe da Administração, Rodrigo Souza – “está muito bem adaptada, é solícita, não deixa para resolver as coisas para depois” –, ela se forma este ano em Economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) com uma monografia sobre o terremoto que devastou sua terra, em 2010. Faz ainda um MBA no Instituto de Engenharia e Gestão (IEG) e precisa vencer a timidez para assumir: “Quero fazer uma carreira brilhante”, planeja, com a segurança de quem sabe o que quer .

O exemplo de Marie se repete em todos os setores da instituição – ou mesmo em locais em busca deste tipo de mão de obra que já começa a despertar interesse em função da qualidade do trabalho que presta -, que selecionam haitianos para preencher vagas, já que o país passa por uma forte crise econômica que dificulta muito a empregabilidade.

Toda essa costura começou a ser feita pela equipe do Haiti Aqui, que participa da elaboração de políticas públicas sobre imigração e integração da cultura haitiana na sociedade brasileira. “O projeto começou em outubro de 2014, com articulações na Rádio Viva Rio, que até hoje mantém programas específicos para os haitianos, além de feiras, atividades esportivas concentradas no time haitiano Pérolas Negras e até com a consolidação da banda Makòs (doce de leite em créole), entre outras iniciativas”, resume a coordenadora, Mélanie Montinard. Segundo ela, hoje existem cerca de oito mil haitianos no Rio de Janeiro.

Mélanie ficou especialmente feliz quando foi procurada pelo encarregado operacional Rafael Caetano, da Livraria Francesa, que mantém no Brasil uma parceria com a Aliança Aliança Francesa, onde monta seus estandes. Ele queria contratar um haitiano, povo que fala o créole, idioma com base no francês. Foi assim que Jaques Yvior, 27 anos, começou a trabalhar como auxiliar de vendas, no fim de maio. “Além do idioma, a França tem uma forte ligação cultural com o Haiti. Ainda durante o treinamento, ele foi promovido a livreiro, ocupando uma vaga que surgiu na unidade de Botafogo. É uma formação continuada e ele está indo muito bem”, elogia Rafael. “É muito bom o aluno sair da aula e encontrar alguém que fale francês para atendê-lo na livraria”, faz coro o gerente de marketing da Aliança Francesa , Luiz Carvalho.

Yvior chegou ao Rio de janeiro em maio de 2013 e foi morar com seu irmão, em Jacarepaguá, na zona Oeste. Conheceu Bob Montinard através de amigos e este o indicou ao Viva Rio. Resolveu o básico do idioma português via televisão e leitura de jornais. Está bem adaptado ao novo trabalho e só lamenta as saudades da família que ficou no Haiti: “Estou feliz, mas sinto falta dos meus pais, irmãos e da filha que nem vi nascer”, admite, embora pretenda  continuar por aqui.

 Evens foi pioneiro

As impressões no Viva Rio sobre os haitianos são bem parecidas. Cláudia Leite, gerente de Aquisições e Logística, está entre as primeiras da instituição a recorrer ao trabalho da mão de obra caribenha. Não houve quem não se comovesse com a situação de Evens Rock Elkana Numa, cuja mulher morreu precocemente e o deixou com um bebê para criar nessa terra que não é sua. Ele foi contratado em agosto de 2015 como auxiliar de manutenção no Galpão da Penha, na zona Norte, onde funciona o setor de patrimônio da instituição. “Ele alugou uma casa, se estabilizou, cuida do bebê sozinho e é um ótimo funcionário”, testemunha Cláudia.

O mesmo acontece em relação aos outros dois haitianos que trabalham no mesmo setor: Eveno Joseph e Saint Juste Martes, sendo que o primeiro atua na área de patrimônio e os dois colegas, na manutenção, funções informalmente chamadas de carregadores, uma espécie de pau para toda a obra. “São funcionários excelentes, cordiais, disponíveis, se integraram na oficina sem problema algum”, completa Cláudia. Embora alguns tenham cursos de especialização no Haiti, só podem ser contratados como auxiliares de manutenção porque estes cursos não são reconhecidos no país.

A impressão da assessora de coordenação de Saúde e Assistência Social, Stefânia Soares, não é muito diferente. Quando o setor recebeu o planejamento de uma grande expansão das Clínicas da Família (CF), que só este ano ganhariam mais 16 unidades no Rio de Janeiro, foram montadas as chamadas ‘comissões de inauguração’, que reuniam profissionais de diversas áreas para dar conta do recado. Assim como os funcionários que trabalham no Galpão da Penha, eles também precisavam de carregadores, capazes de fazer todo tipo de serviço braçal.

“Quando foi inaugurada a Clínica do Parque Olímpico Ivanir de Mello, em Deodoro, precisávamos de seis funcionários. O desempenho dos haitianos já tinha sido aprovado quando abrimos, em julho, a CF Nilda de Campos Lima, em Brás de Pina. Apareceram  sete homens, que passaram mais de uma semana trabalhando intensamente, o pessoal adorou. Eles são super atenciosos, se integram com todos, são tranquilos e não reclamam de nada”, descreveu Stefânia, aliviada em saber que poderá contar com essa mão de obra qualificada nas próximas inaugurações.

No fim de setembro, seis haitianos foram deslocados para ajudar a concluir a obra da CF de Coelho Neto, no Morro União, na Zona Norte, ainda sem nome definido. Geraldo Volci, 20 anos, Jacquelin Ceac, 35, Jocelyn Benoit, 30, Léonel Simeon, 24, Jonh Kelly Jean Basptiste, 18 e Altenor Augustin, 48, formaram um time afiado para garantir a inauguração dentro do prazo estipulado pela Secretaria Municipal de Saúde. “Chegamos para trabalhar e gostamos do que fazemos”, sintetizou, convicto, Jacquelin, enquanto desempenhava as funções de carregador. Ele e os colegas já se viram bem com o idioma, também empenhados na leitura de jornais e de olho na TV. Assim como os conterrâneos, o único problema é a saudade dos que deixou no Haiti.

A assessora técnica do Viva Rio, Cláudia Cerqueira, que responde pela obra de Coelho Neto, é só elogios para a equipe caribenha: “Ficamos encantados com a educação, gentileza e sobretudo a disponibilidade, maior que a dos brasileiros”, comparou. “Além disso, são lindos e estilosos”, derrete-se.

Unanimidade

Outra unanimidade na casa é o haitiano Clonius Belizaire, 48 anos, que conseguiu um emprego no Viva Rio através de amigos. Nunca o antigo elevador da sede foi tão lustroso: “Vi que precisava limpar e limpei”. Simples assim, não precisa mandar, ele faz tudo por conta própria. Ele batalhou para chegar ao Brasil, foi trabalhar em uma cooperativa no Rio Grande do Sul e saiu de lá por causa do frio. Em curta temporada no Rio, encontrou aqui o lugar ideal para morar. “Agora só falta trazer a mais velha (de suas cinco filhas) para viver comigo na Cidade de Deus”, planeja.

Como se pode ver, a única queixa dos haitianos são as saudades da família que deixaram na terra natal. Marie, por exemplo, se sente tão bem adaptada ao Rio de Janeiro que tem as suas dúvidas se um dia vai voltar para o Haiti. “Me sinto bem aqui, não penso em sair. Gosto de passear, de fazer trilhas na natureza e já conheci lugares incríveis, como a pista Cláudio Coutinho, na Urca, e a Floresta da Tijuca. Sinto muita falta da família, mas quem sabe eles também não conseguem vir para cá?”, especula. É o sonho de todos eles.

(Texto: Celina Côrtes| Fotos: Amaury Alves, Paulo Barros e Vitor Madeira)

 

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