Armas que não protegem

24/6/2016

Confira a íntegra do artigo de Antonio Rangel Bandeira publicado na página de Opinião do Jornal O Globo no dia 23 de junho.

Rangel

Para cada tentativa de defesa armada bem-sucedida contra ataque armado, 32 outras acabaram com a morte da vítima que reage

O massacre em Orlando trouxe ao debate público o uso de armas para autodefesa. O Partido Republicano logo lançou mão do slogan da National Rifle Association: “Armas não matam. Quem mata são as pessoas.” Esse é um sofisma fácil de desmontar, pois a realidade mostra que, por si só, armas não matam, nem pessoas matam. Quem mata são pessoas armadas, obviamente.

Em seguida, o candidato da NRA, Donald Trump, afirmou que “pessoas armadas na boate poderiam ter diminuído um pouco a tragédia”. Ao contrário, não teria havido tantos mortos se civis não pudessem comprar fuzis AR-15 ou se houvesse controle na entrada da boate. Alega-se que quem quer matar, se não tiver arma de fogo, recorrerá a faca ou outro instrumento.

É uma comparação descabida. Tentativas de homicídio com arma de fogo têm 75% de chances de sucesso, enquanto tentativas com arma branca, de apenas 36%. Por isso, atentados em escolas no Japão e China redundaram em vários feridos, e raríssimos mortos, uma vez que lá civis não têm acesso a armas de fogo.

Na boate de Orlando havia um segurança armado, que pouco pôde fazer frente ao terrorista armado de fuzil, além de pistola 9mm. Nos EUA, nos últimos cinco anos, foram vendidos para civis 1,5 milhão de fuzis de guerra AR-15 (versão para civis), que são armas semiautomáticas, quase metralhadoras. Disparam 900 tiros por minuto e carregam pente com 30 projéteis.

A NRA as considera “ótimas para autodefesa”. Mas o que vemos é o seu uso em massacres. Seus defensores ingênuos confundem a fantasia do cinema com a dura realidade. Armas de fogo são ótimas para ataque, e muito precárias para autodefesa, porque o agressor conta com o fator surpresa. Ótimos atiradores, quando surpreendidos, são abatidos em frações de segundos.

As pesquisas independentes são unânimes em comprovar essa realidade, que os especialistas, e a sabedoria popular, captaram, ao afirmar que “quem reage morre”. A pesquisa mais recente concluiu que, em média, para cada tentativa de defesa armada bem-sucedida contra ataque ar- mado, 32 outras tentativas acabaram com a morte da vítima que reage, segundo o Centro de Política sobre Violência, dos EUA.

No Brasil, a bancada da bala tenta derrubar no Congresso o Estatuto do Desarmamento, que estabelece o controle de armas, e proíbe o seu porte, impedindo que civis andem armados em lugares públicos. A nova lei foi aprovada em dezembro de 2003, e implementada a partir de 2004. Pois de 2004 a 2014, o controle de armas determinado pelo Estatuto evitou a morte por arma de fogo de 133.387 pessoas, segundo o último Mapa da Violência, do sociólogo Julio Waiselfisz.

Para o lobby da indústria de armas, ao contrário, pouco importa que a violência vá explodir, com gente andando armada em shoppings, cinemas, restaurantes e escolas, seguindo-se a trajetória dos EUA, com seus homicídios de inocentes em série e em massa. Se armas de fogo são ineficazes para autodefesa, como nos proteger? Não é preciso inventar. Basta seguir o exemplo das democracias que reduziram drasticamente esses homicídios.

Tiveram êxito ao fazerem grandes e inteligentes investimentos em segurança pública. A polícia passou a combater com efic ência o crime organizado, a controlar seus membros para que não fossem cúmplices do tráfico ilegal de armas, a fiscalizar as fábricas, lojas e fronteiras para reduzir esse tráfico, a proteger não só os cidadãos em geral, mas principalmente os que exercem profissão de risco, a proibir, ou controlar, as armas em posse de civis.

Essa é a solução democrática e eficaz, e não o modelo armamentista americano, que condena os EUA a serem campeões de homicídios por arma de fogo entre todos os países desenvolvidos, e o primeiro em suicídios por arma de fogo em todo o mundo. Nos EUA, inacreditáveis 61,3% das mortes por arma de fogo são suicídios.

O Estado não pode fugir à responsabilidade constitucional de proteger os bens e a vida dos cidadãos, deixando-os entregues à própria sorte. O Estatuto do Desarmamento foi um importante passo na direção de avançar na construção de uma sociedade segura. Agora, é preciso defender a segurança pública contra a ganância e a insanidade de interesses privados, como ocorre nos EUA, implementando o Estatuto em sua totalidade, e investindo mais e melhor na reforma da polícia.

Essa é a saída democrática para a redução da violência armada no Brasil.

Antonio Rangel Bandeira é sociólogo do Viva Rio e da Frente Parlamentar pela Vida

 

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