Dizem que por trás de um grande homem sempre existe uma grande mulher. No caso de Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997), ela se chama Anésia Maia de Araújo, com os mesmos 80 anos que ele faria em 3 de novembro se estivesse vivo. Dona Anésia foi cofundadora da Ação da Cidadania, ideia genial do sociólogo para mitigar a fome.
Quando ainda predominava a tese de que a política se fazia pelo “nós”, através de sindicatos e partidos políticos, Betinho introduziu o “eu” no cenário político. “Ele dizia que era do partido dos pobres”, diverte-se ela que, antes de conhecê-lo, nos anos 80, já atuava em asilos e abrigos de 32 instituições ligadas à Embratel, onde trabalhava.
Não por acaso, a Ação da Cidadania começou seu trabalho pelos idosos, em 1985. “Eu e Betinho achávamos que eles são os mais desamparados, até pela própria família”, lembra Anésia, que ainda mantém um leve sotaque amazonense, a terra natal que trocou pelo Rio de Janeiro em 1958, para acompanhar o marido aviador, David Araújo.
Na hora do almoço ela ia até o escritório onde Betinho começou a montar a Ação da Cidadania, na Rua Floriano Peixoto, perto de seu trabalho. A ideia central era combater a fome e, para isso, eram procuradas sobretudo empresas ligadas à alimentação, como as Casas da Banha, o Mercado Municipal do Rio de Janeiro (Cadeg) e a Central de Abastecimento da cidade (Ceasa). O dinheiro era arrecadado com festas e eventos, enquanto se fazia um levantamento das comunidades carentes da Baixada Fluminense, onde eram distribuídas as cestas básicas adquiridas pelo movimento. Betinho, Anésia e voluntários assumiam a distribuição em Kombis cedidas por empresas envolvidas no Comitê da Cidadania, como a Embratel e Furnas, entre outras.
Com ajuda da mídia e de artistas envolvidos na causa, como Carolina Dieckmann e Marcos Frota, o trabalho foi crescendo e Betinho conseguiu emprestado um armazém do Cais do Porto, um esqueleto recuperado por meio dos recursos que o sociólogo conseguia arrecadar. “Uma grande ajuda eram as doações de mercadorias apreendidas pela Receita Federal”, recorda ela.
Ainda nos anos 80 a dupla criou o primeiro restaurante popular do Rio, na Central do Brasil, existente até hoje e batizado de Herbert de Souza. Se hoje é cobrado um valor simbólico pela refeição, na época a comida era distribuída de graça entre os famintos. “As pessoas choravam na fila para pegar comida. Depois Garotinho comprou nossa ideia, mas o importante é que continuou a dar frutos”, observa. E mais tarde foi o ex-presidente Lula que incorporou a questão da fome em seu discurso e projeto político.
O movimento cresceu e conquistou a sociedade. Anésia não esquece as grandes mesas que montavam no Aterro do Flamengo com as frutas doadas pela Ceasa. “Era um conforto ver crianças carentes que nunca tinham comido uma maçã”, rememora com emoção. Claro que a vida pessoal era relegada ao escanteio para dar conta de tanto trabalho. Já tinha se separado do marido quando começou a Ação da Cidadania mas, além do trabalho, ela tinha um casal de filhos para criar. “Era sábado, domingo, não tinha vida social”, diz sem autopiedade.
Anésia acompanhou várias transfusões de sangue feitas por causa da hemofilia de Betinho, morto pela falta de controle de qualidade na época, que o levou a contrair Aids . “Mesmo debilitado ele participava de tudo. Até saiu na Mangueira, na ala dos Amigos do Betinho. Era muito querido por todos os meios, inclusive o político”.
E para quem passou a vida ajudando, essa atividade não pode parar. Hoje, aposentada, ela bate seu ponto todas as quartas-feiras em um abrigo de idosos vizinho à sua casa, no Rocha, na Zona Norte da cidade. “Vou lá para conversar, para fazer a minha parte. Meu perfil mesmo sempre foi o de ajudar os idosos”, conclui.
(Texto Celina Côrtes|Fotos: Paulo Barros)