Um transtorno adquirido durante os meses que trabalhou como gari comunitário da Rocinha mudou para sempre a vida de Daniel Venceslau, 36 anos. Depois de internações no Instituto Phillippe Pinel, localizado na Praia Vermelha, ele conheceu as oficinas de pintura do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III Maria do Socorro Santos e descobriu um de seus maiores amores: as artes plásticas.
Por conta das dificuldades que as equipes de limpeza da prefeitura do Rio tinham de adentrar a região, Daniel foi contratado, em 2002, para recolher os lixos espalhados pelas vielas da comunidade. Na época, a Rocinha estava sob o domínio de facções criminosas em constante duelo com a força policial. Era praxe que os corpos resultantes dessa guerra fossem despejados em tambores de lixo. “Conviver com essas cenas não me fez bem, pois fiquei muito nervoso e só pensava em sangue e morte”, disse.
O trauma fez com que sua esposa e sogra o internassem, no mesmo ano, no Pinel. Na ocasião, o hospital psiquiátrico adotava duros modelos de tratamento. Daniel explica que vivia amarrado e preso dentro de um pequeno quarto com outro paciente, privado do acesso ao ar livre. O tratamento que recebia no instituto não remetia aos ideais do pai da psiquiatria, Phillippe Pinel. O médico propôs uma nova forma de tratamento, fundamentado na reeducação, respeito às normas e desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, as ações deveriam ser exercidas com firmeza, porém com gentileza.
Com o passar do tempo, esse modelo se modificou e foi esvaziado das ideias originais. Permaneceram as posturas corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional, medidas que Daniel sentiu na pele. As injeções à força, falta de perspectiva futura e carência de atividades fez com que saísse ainda pior do hospital psiquiátrico. “Só vivia babando, chorando, ficava muito triste e pensava que ia morrer”, disse Daniel Venceslau. Ele não sabe ao certo quanto tempo ficou internado no Pinel, mas acredita que tenha sido mais de seis anos.
Passados quatro anos, as marcas obtidas pelos tratamentos abusivos no Pinel ainda persistem. “Na minha cabeça passam muitas coisas que eu sofri no hospital”, contou. A saída do Instituto Pinel representou um alívio para o artista, que começou a perceber suas habilidades e que poderia fazer algo para auxiliar em sua recuperação. A chegada ao CAPS Maria do Socorro ocorreu por intermédio de uma médica que o atendia no posto de saúde do Vidigal, local onde reside desde que chegou da Paraíba nos anos 2000. A profissional de saúde chamou a esposa de Daniel e indicou a unidade da Rocinha. “Quando cheguei aqui logo percebi que era diferente, pois me sentia e ainda sinto livre.
No momento em que chegou à unidade, foi convidado por Mereide Medeiros, professora de artes plásticas do CAPS, para participar das oficinas. As obras de Daniel são previamente desenhadas em sua mente. Às vezes transmite para a tela sonhos que teve na noite anterior. “Eu consigo falar através dos pincéis e isso me deixa bem e mais tranquilo”, informou.
A pintura também o ajudou a minimizar o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) que adquiriu após sair do instituto psiquiátrico. “Antes eu ficava em casa varrendo o dia todo”, disse. E, de certa forma, amenizou o trauma que o artista contraiu durante seu trabalho como gari. “A arte mudou a minha forma de falar com o mundo”, acrescentou.
Daniel afirmou que agora se sente outra pessoa e que, mesmo ainda lembrando as rotineiras cenas dos corpos jogados nas latas de lixo da Rocinha, acredita que um dia volte a ficar bom. Por enquanto, ele segue vendendo seus quadros, já foram seis, e ajudando a complementar a renda de sua esposa que trabalha como diarista. O artista também é beneficiado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que institui benefícios, serviços, programas e projetos destinados ao enfrentamento da exclusão social dos segmentos mais vulnerabilizados da população.