Como seria um Estado pós-proibição das drogas?

A resposta está no documento “Depois da guerra contra as drogas: Uma proposta para a regulação”, prefaciado pelo ex-presidente da Colômbia César Gavíria. Com a falência do modelo da “guerra às drogas”, a publicação se propõe a vencer o maior obstáculo à reforma da lei: o medo do desconhecido.

A publicação propõe modelos específicos de regulação para os principais tipos de drogas ilegais e seus modos de preparação, bem como os princípios e fundamentos dessas propostas. Ela mostra que a regulação legal das drogas não é um passo inconcebível e politicamente impossível na escuridão, mas sim uma proposta sensata e pragmática para controlar a produção, o fornecimento e o consumo de drogas.

“O mundo requer e merece um sistema de controle que não seja corrupto, que tenha uma integridade verdadeira – prudente, abrangente e profundo –, que seja democrático, e que ofereça segurança, desenvolvimento e saúde no contexto dos direitos humanos. Sou realista e por isso eu creio que precisaríamos de mais dez anos para transformar esta proposta em realidade. Tragicamente, na próxima década, mais milhares de pessoas devem morrer por conta do consumo de drogas sujas ou tentando deixá-las, ou disputando o poder do tráfico ilegal. Ao mesmo tempo, coletivamente desperdiçaremos outros bilhões de dólares na guerra global contra as drogas”, escreve César Gavíria. Leia abaixo o texto do o ex-presidente da Colômbia.

Depois da Guerra contra as Drogas: uma proposta para a regulamentação  

Nos encontramos à beira de uma mudança significativa relacionada a políticas internacionais de drogas, uma mudança que transformará todo o planeta. Depois de décadas de espera, é a sua vez de subir ao palco, as alternativas à proibição estão agora firmemente colocadas na mesa de negociações para serem discutidas. A esmagadora resposta positiva por parte dos meios de comunicação ao informe da Comissão Global sobre Políticas de Drogas (ao qual me orgulho de pertencer), mostrou que há uma enorme sede de mudança.  

Esta tradução em espanhol de “Depois da Guerra às Drogas – Uma Proposta para a Regulamentação” se mostra importante por conta dos impactos esmagadoramente catastróficos da guerra contra as drogas na América Latina, mas também por que agora existe um grande entusiasmo por uma reforma progressiva. Durante o último ano, os presidentes da Colômbia e do México tem formulado chamados por uma discussão sobre drogas baseada em evidências sobre estratégias alternativas, incluindo a regulamentação legal.  

A mudança para a regulamentação legal resultará em importantes benefícios para os países que se encontram envolvidos de maneira significativa na produção, trânsito e consumo de drogas atualmente ilícitas. As repercussões positivas, no entanto, se espalharão para muito mais além destes países e, em última instância, beneficiaram a todos  – implementando a segurança, promovendo o desenvolvimento, reafirmando a democracia e ratificando os direitos humanos. Todos estes valores eu levo muito dentro de mim desde a época em que fui Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo quatro pilares coincidem com estes princípios políticos.  

Este não será, no entanto, um caminho tranquilo. Os EUA levaram outros Estados-membros da ONU a se oporem ao pedido da Bolívia de alteração da Convenção Única de Entorpecentes das Nações Unidas, a fim de permitir que as populações indígenas mastigassem as folhas de coca, dizendo que isso poderia ameaçar a “integridade” da Convenção de 1961. “Integridade” significa que o sistema global de controle de drogas é “intacto, sólido, essencial e completo”. Cada relatório sobre drogas produzido nos últimos dez anos mostra que isso está longe de ser verdade. Nenhum desses informes chegou ao ponto de dizer que o atual sistema está livre de problemas e, de fato, a maioria desses relatórios, incluindo os elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, questionam os princípios subjacentes e os resultados deste regime.  

Seria mais apropriado descrever o sistema atual como “corrupto” no sentido original do termo, que indica deteriorado e danificado. Desde sua concepção, o sistema para o controle de drogas da ONU foi dividido em dois. Em 1961, a Convenção Única sobre Entorpecentes formulou um rigoroso sistema de regulamentação sobre a produção, fornecimento e consumo de drogas para uso medicinal; enquanto ao mesmo tempo construía uma proibição global absoluta para a produção, fornecimento e consumo de drogas medicinais.  

Estes regimes de controle produziram dois tipos de mercados muito diferentes – Um regulado pelos governos e sujeitos a acordos comerciais internacionais; e outro manuseado por organizações criminais, grupos rebeldes, paramilitares e funcionários corruptos, localizado completamente fora do controle dos governos e das agências multinacionais. É este último mercado que está afligindo a países tão distantes como Afeganistão, de onde o Estado de Direito tem sido significantemente prejudicado por conta da sua participação na produção de ópio; Colômbia, cujo o governo está comprometido pela influência catalítica da cocaína em apoio as atividades subversivas, paramilitares e parapolíticos; Guiné-Bissau, onde o frágil Estado desabou e se converteu em um narco-estado se tornando parte da nova rota para o trânsito da cocaína; e o México, onde a violência da luta interna pelo controle territorial tem causado as dezenas de milhares de assassinatos mais terrivelmente violentos nos últimos anos.  

E, no entanto, enquanto se produz cocaína legal para o mercado médico sem comprometer a segurança regional e global, a papoula é cultivada em todo o mundo, tanto para controlar e para tratar o vício sem minar o desenvolvimento em Estados frágeis ou contribuir ao crime e à criminalidade. A única conclusão que podemos extrair destes exemplos contraditórios é que o que determina a eficácia dos resultados é o sistema de controle. O vento que balança os cultivos de papoula na Índia, Tasmânia e no Reino Unido, os leva para uma rota diametralmente diferente da traçada para os cultivos da mesma planta no sul do Afeganistão  

Como esta  “Proposta para a Regulamentação” mostra em detalhe, a regulamentação das drogas não é, em absoluto, um passo para o desconhecido. O mercado paralelo de drogas, legalmente regulamentado, tem uma longa história e uma sólida base de evidências que mostram tanto seus pontos fortes como suas fraquezas. Uma lição que devemos tirar de nossa experiência é que os governos devem intervir com mais vigor nos mercados de álcool e cigarro. É improvável que empresas multinacionais, cuja máxima prioridade é a ganância, tenham grande respeito pela saúde de sues clientes. Nenhuma pessoa seriamente interessada com as necessidades das pessoas desfavorecidas e vulneráveis toleraria a venda livre de heroína por parte de fornecedores não licenciados (assim como ocorre atualmente com o cigarro).  

“Depois da Guerra contra as Drogas – uma Proposta para a Regulamentação” descreve três opiniões básicas para a regulamentação por parte do governo – prescrição, venda através de farmácias e vendas licenciadas. Dados divulgados pela ONU estimam que existem cerca de 250 milhões de usuários de drogas ilícitas, então é extremamente perverso deixar o comércio que oferece essas substâncias nas mãos do crime organizado e traficantes isentos de regulamentação.  

O mundo requer e merece um sistema de controle que não seja corrupto, que tenha uma integridade verdadeira – prudente, abrangente e profundo –, que seja democrático, e que ofereça segurança, desenvolvimento e saúde no contexto dos direitos humanos. Sou realista e por isso eu creio que precisaríamos de mais dez anos para transformar esta “Proposta” em realidade. Tragicamente, na próxima década, mais milhares de pessoas devem morrer por conta do consumo de drogas sujas ou tentando deixá-las, ou disputando o poder do tráfico ilegal. Ao mesmo tempo, coletivamente desperdiçaremos outros bilhões de dólares na guerra global contra as drogas.  

No entanto, uma vez que passos positivos são dados na direção certa, e o apoio popular para a reforma cresce inexoravelmente. A descriminalização dos usuários de drogas está ganhando terreno em muitos países da América Latina, e é quase certo que dentro de poucos anos comecem os experimentos com a regulamentação legal da maconha em vários lugares.  

 

Clique aqui para acessar a publicação na íntegra (disponível em espanhol, inglês e italiano).

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