Gingando pela Paz, hoje organização social independente, completa 21 anos 

 

Gingando pela Paz no Haiti

 

Criado no Brasil em 2003 e levado para o Haiti em 2008, o Gingando pela Paz iniciou como um projeto no Viva Rio. Hoje é uma organização social independente liderada por Flávio Saudade, idealizador da iniciativa. Com foco no protagonismo de jovens moradores de territórios atingidos pela violência armada, a Gingando reforça o conteúdo pedagógico da capoeira com diferentes formações que objetivam desenvolver potenciais e engajar as pessoas na promoção da cultura da paz.

Atualmente, a organização não-governamental Gingando pela Paz foca as suas atividades na República Democrática do Congo e atende mais de 350 pessoas, entre 7 e 27 anos, utilizando a capoeira como tecnologia social em programas voltados para a proteção de crianças afetadas pela violência armada: a Capoeira Social. Rodas de diálogos para jovens mulheres, reuniões com mães e responsáveis, sessão de cinema e gestão de atividades são algumas das ações da organização, que tem uma liderança composta por 98% de jovens formados pela Gingando.

A história da organização começa em 2001, quando o mestre Saudade, como é conhecido na capoeira, na época funcionário do Viva Rio, encontrou uma cartilha de empreendedorismo social, enquanto procurava por uma faixa de um evento, e passou a estudar esse material diariamente. Desse estudo e da inspiração de outros projetos do Viva Rio, surge a ideia do Gingando pela Paz. 

“Eu cresci em um território violento, perdi pessoas da minha família e amigos pela violência armada. A Gingando pela Paz é a resposta que eu tento dar para a violência. Eu escolhi utilizar o berimbau, a minha ginga para continuar seguindo e dar a minha resposta, que é permanente, algumas vezes cansativa, mas sempre cheia de esperança e confiança de que estamos no caminho certo”, conta Flávio.   

Em recente visita ao Viva Rio, em sua sede no Cantagalo, em Ipanema, ele concedeu uma entrevista e relembrou sua história com o Viva Rio e com a capoeira, além de contar sobre a origem da Gingando. Leia abaixo a conversa e conheça mais sobre o trabalho de Flávio Saudade, dentro e fora do Viva Rio.

Como começa sua história com a capoeira? 

“Comecei a capoeira quando era criança, inspirado por um tio. As primeiras memórias que eu tenho são de brincar no quintal onde a gente morava, meu tio chegava e fazia umas brincadeiras, que naquela época eram mal vistas. Com mais ou menos 13 anos entrei em um projeto social da prefeitura de São Gonçalo, cidade onde eu nasci e cresci. Ali encontrei o meu mestre, Marcos Wagner, que me formou mestre anos mais tarde. Através dele dei os meus primeiros passos no trabalho social, através da capoeira”.

Como conheceu o Viva Rio?

“Minha vida foi muito atribulada em termos de estudo, meu pai faleceu quando eu ainda era pequeno, aí saí da escola, fiquei quatro anos sem estudar. Com 21 anos senti necessidade de voltar à sala de aula e ter contato com o computador. Soube de um projeto que oferecia curso de informática gratuito. Felizmente, quando cheguei lá, não era só um curso de informática. Nele eu podia terminar meu ensino fundamental, tinha uma série de outros cursos, como cidadania, direitos humanos, gestão de pequenos negócios e mediação de conflitos, além de ainda receber uma bolsa para estudar. 

Foi o Serviço Civil Voluntário, um programa incrível do Viva Rio, que beneficiou mais de 3. 600 jovens em situação de risco social. A partir desse programa eu consegui entender que o que eu fazia na capoeira era cidadania e direitos humanos, temas que na comunidade a gente não está muito acostumado a discutir.”

Como a relação com o Viva Rio se fortalece e como a capoeira entra em cena? 

“Consegui terminar esse curso, fazer a prova e passar. Ao final, o Viva Rio realizou um concurso chamado “Jovens no Zimbábue”, onde foram selecionados quatro jovens para ir a um evento no Conselho Mundial de Igrejas, em Zimbábue, na África. Eu fui um dos selecionados e assim tive contato com o fundador do Viva Rio, Rubem César, e André Porto, que viria a ser o meu coordenador em eventos.

Fui ao Zimbábue apresentar a capoeira, mas também para falar sobre violência e juventude. Depois disso, fui convidado para ser voluntário na instituição e fiz diversas viagens internacionais, incluindo um intercâmbio na Alemanha, através de um antigo projeto do Viva Rio, o Luta pela Paz. Meses depois, fui contratado como assistente de produção de eventos onde permaneci por alguns anos. 

Durante esses anos, sempre que dava eu colocava a capoeira no meio das ações. E o Viva Rio também sempre abriu espaço. Recebíamos muitas visitas de estrangeiros e a gente se apresentava. Naquela época eu era professor em capoeira, já tinha um percurso social com ela. No Viva Rio eu começo a ter contato com muitas organizações sociais e com mais projetos que utilizavam a capoeira nas comunidades.”

Viagem “Jovens no Zimbábue” a um evento no Conselho Mundial de Igrejas, na África 

 

Como surgiu o Gingando pela Paz? Quando e como foi o lançamento oficial do projeto (hoje organização social)?

“Em um dia comum de trabalho, me pediram para encontrar uma faixa de um evento antigo em um depósito do Viva Rio. Foi ali que encontrei a apostila de um curso de gestão de projetos. Essa apostila virou meu livro de cabeceira, comecei a estudá-la como se estivesse faminto diante de um prato de comida. Assim comecei a entender como os projetos do Viva funcionavam e foi nascendo a ideia da Gingando.

Redigi o projeto com a ajuda de uma amiga que trabalhava como captadora de recursos no Viva Rio e apresentei ao Rubem, que aprovou a ideia. Iniciamos com aulas para os funcionários na antiga sede, na Glória, mas a gente queria mesmo era dar aula para as crianças na comunidade. Foi assim que a Gingando começou, em 2003. 

Mas o projeto só foi lançado oficialmente em 2005, durante a Campanha Nacional de Desarmamento, nas vésperas da realização do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. 

A primeira ‘Caminhada Gingando pela Paz: Sim pela Capoeira! Sim pela vida!’ reuniu mais de 700 capoeiristas na orla de Copacabana em apoio à proibição do comércio de armas de fogo no Brasil. Com apoio de mestres e amigos, nós conseguimos mobilizar capoeiristas do Brasil e do exterior, além do Acervo Cultural da Capoeira Arthur Emídio de Oliveira da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A capoeira foi uma ferramenta que utilizamos para mobilizar as pessoas, precisávamos disso para ter sucesso no referendo. Assim nasce, oficialmente, o projeto Gingando pela Paz.”

Aulas na República Democrática do Congo, em 2016

 

Em outubro de 2008 eu estava desembarcando no Haiti, a convite do Rubem, para levar a Gingando para lá, como parte de um Acordo de Paz que o Viva Rio estava implementando no país, junto com a ONU. Na nossa segunda noite já estávamos no palco, nos apresentando para mais de mil pessoas. 

As atividades começaram em Bel Air, na capital de Porto Príncipe e atendiam cerca de 15 meninas e meninos que foram utilizados pelas gangues. No ano seguinte, abrimos as portas para todas as crianças da comunidade. A capoeira virou um fenômeno. Precisei levar meu irmão, Leonardo Nó-Cego, e um amigo, Alexandre Ligeirinho, para formar a equipe. 

Atendemos cerca de 350 crianças, sempre com foco na proteção delas e na formação de jovens educadores. Neste momento, comecei a desenvolver a metodologia e uma série de ferramentas que utilizamos na Gingando hoje, que reforça a parte pedagógica da capoeira e permite medir o impacto nas crianças.

Com o terremoto, em 2010, o trabalho ficou ainda mais pesado. Passamos a atender mais de 500 pessoas por dia, tentando amenizar o trauma causado e trazer esperança. E a participação dos jovens que estávamos formando foi fundamental. Neste momento começamos a reforçar mais as ações para a transmissão de competências. O que deu bastante certo e replicamos anos mais tarde, na República Democrática do Congo”. 

O Gingando também atuou em parceria com a Unicef na República Democrática do Congo. Como essa parceria aconteceu? Como eram as atividades lá? 

“Quando ainda estava no Haiti, em 2013, encontrei um artigo na internet sobre um atelier em capoeira promovido pela embaixada do Brasil na República Democrática do Congo. O artigo tinha o e-mail do embaixador, Paulo Uchoa, e eu escrevi para ele propondo um intercâmbio. Para a minha surpresa, ele respondeu dizendo que gostaria de implementar um projeto parecido no país. A iniciativa tinha nascido em uma conversa entre ele e a princesa Carolina de Hanover, que preside a Associação Mundial dos Amigos da Infância, a AMADE. Após um encontro com o embaixador e o Rubem no Rio, passei a integrar o grupo de trabalho para desenvolver o projeto. 

Em 2014, eu desembarcava em Kinshasa, para implementar o programa Capoeira pour la Paix, que integrou a Capoeira nas ações do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Goma, no Kivu do Norte, região conhecida pela presença de diferentes grupos armados. Em 2016 passei a coordenar pessoalmente as atividades do programa. Foi uma chance para seguir desenvolvendo a nossa metodologia em uma escala maior. Em quatro anos, as atividades atenderam mais de 7.000 crianças, a maioria desmobilizadas de grupos armados e meninas sobreviventes de violência. 

Como o projeto se transformou em uma organização não-governamental? 

“Depois de a Unicef terminar o programa, em 2018, eu seguia em Goma. Muitas crianças e sobretudo jovens me procuravam para seguir com a sua formação. Alguns deles até já haviam iniciado algumas atividades em suas comunidades e precisavam de orientação. Isso me fez sentir que precisava dar um passo mais ousado. Foi então que registrei a Gingando pela Paz como uma organização não-governamental aqui no Brasil, em 2018, com endereço na sede do Viva Rio, que ainda é um grande parceiro. Nos registramos na França, em 2019, para captação de recursos e na RDC, em 2020, onde, com o apoio da AMADE, lançamos um centro de formação para a Capoeira Social. No futuro, vamos levar a organização para o Haiti, e estamos trabalhando para retomar as nossas atividades aqui no Brasil, no Rio de Janeiro.”

Qual é a metodologia da Gingando pela Paz? Como é o trabalho realizado atualmente no Congo?

“A metodologia da Gingando enxerga a criança e o jovem como protagonistas. Apesar das inúmeras violências que eles sofreram, não os consideramos vítimas, mas os principais agentes da transformação. Com isso, já conseguimos fechar parcerias com diversas organizações nacionais e internacionais, como a Cooperação Alemã (GIZ) e Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD). 

Continuamos a atuar na proteção das crianças, especialmente daquelas que foram expostas à violência, mobilizadas por grupos armados, meninas e jovens sobreviventes de violência sexual e crianças em situação de rua. Também temos uma proposta de desenvolvimento dos jovens. Temos um trabalho voltado para formação de jovens que utilizam a capoeira para atuar na área social. A exemplo do Serviço Civil Voluntário, do Viva Rio, integramos outras formações, como direitos humanos, proteção da criança e gestão. Futuramente a ideia é incluir informática também. 

Na verdade, o que eu faço é tudo o que aprendi na universidade que para mim foi o Viva Rio, onde me formei. Peguei todo meu aprendizado e capitalizei num projeto, que hoje é uma organização social que tenta oferecer para esses jovens a mesma coisa que eu tive: acesso a um espaço seguro, onde eles podem vencer os seus traumas. Trabalhamos para dar todo o apoio para que eles possam desenvolver a capacidade deles, suas habilidades, e trabalhar para realizar a transformação que eles precisam, para eles, para as suas famílias, para as suas comunidades e para o seu país.”

Confira mais fotos do projeto ao longo dos anos.

 

 

Texto: Raquel de Paula

Fotos: Acervo Gingando pela Paz

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