Alguém matou Fenelon ontem de manhã

A gente se conheceu em dezembro de 2006, graças a Jean Philippe, um amigo francês que sabe muito do Haiti. “O melhor motorista do mundo”, disse-me ele. Marcel Fenelon estava desempregado e aceitou o convite com um sorriso discreto.

Viajamos juntos desde então, da primeira à última hora. Brincava com ele, chamando-o de meu cartão de crédito – não saio de casa sem você! Chamava-o também de meu GPS, porque parecia conhecer cada esquina do país. Vivian dizia “Meu Anjo”. Transmitia um sentimento de segurança. Certa vez, questionado por um funcionário internacional sobre o meu plano de evacuação, pensei por um instante e respondi no ato: meu plano é ele, o Fenelon.

Em abril de 2008, quando Porto Príncipe era tomada por desordens provocadas pelo Movimento da Grande Fome, coube-nos levar um visitante ilustre ao aeroporto para um voo às 14hs. Fenelon recomendou sairmos às 9hs e, de fato, conseguimos chegar a tempo, graças à sua perícia na descida por becos e vielas de favelas, cuja juventude revoltada havia se ausentado para os protestos nas ruas e avenidas principais.

De outra feita, o país paralisado por manifestações contra manobras eleitorais, partimos às 3h da manhã. Dirigimos um bom tempo por entre barricadas sonolentas, até que demos de frente com um grupo em guarda. Fenelon desceu do carro e convenceu um deles a vir conosco até a fronteira, de pé na traseira da caminhonete, abrindo caminho, em troca de uma pequena remuneração. Cruzamos a fronteira com tranquilidade e seguimos rumo às amplas estradas da República Dominicana. Só então, para a minha surpresa, percebi fraqueza em meu companheiro. Difícil de acreditar, mas o fato é que Fenelon, o melhor motorista, desconhecia os sinais de trânsito das estradas. Linhas contínuas ou pontilhadas não tinham significado para ele. Tráfego lento à direita e rápido à esquerda, tampouco era percebido. Pior ainda: quando alerto Fenelon para que dê mais atenção aos letreiros, percebo que já não enxerga muito bem, ao menos não o bastante para ler à distância. De volta a Porto Príncipe, comprou um vistoso óculos escuros, com as lentes apropriadas para os míopes, que passou a ostentar com orgulho.

Ter o Fenelon ao volante era um privilégio para poucos, como o diretor, naturalmente, mas também para alguém como Tarta, de Macaé, que ganhou sua confiança para sair depois trabalho, tomar uma Prestige e brincar. Ainda ontem, levando Vivian a Kay Nou, nossa sede em Bel Air, Fenelon deixou a entender que tinha uma ótima notícia para me dar, um segredo daqueles, e se pôs a rir com a cabeça inclinada para trás. Meia hora depois, foi assaltado por alguém que lhe mandou um tiro na cabeça, à queima roupa.

Levamos conosco a imagem de Fenelon e faremos do nosso melhor para honrá-lo. Seu funeral há de ser lembrado como um canto vigoroso pela justiça e o perdão, para além da loucura, para que nos conduza uma vez mais, e desta vez pela eternidade, a um lugar de espíritos livres, que não carecem usar sapatos, nem chapéus, para mover-se na tranquilidade.

Rubem César Fernandes (Diretor executivo do Viva Rio)
10 de Fevereiro de 2012.

 

Marcel Fenelon, 62 anos, era um dos motoristas do Viva Rio Haiti. Na manhã do dia 09 de fevereiro, enquanto dirigia por uma das ruas principais da área da Grande Bel-Air, a Jean-Jacques Dessalines Boulevard, ele foi atingido por uma bala. Fenelon chegou a ser encaminhado para o hospital, mas infelizmente não resistiu. Profissional exemplar, sempre alegre e amigo de todos com quem convivia, Fenelon estava sempre pronto para servir e ajudar, dentro ou fora do horário de trabalho. Ele participou ativamente da implementação do programa Honra e Respeito pelo Haiti, na capital Porto Príncipe.

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