20/12/2016
Deva Rubenstayn, 28 anos, nasceu Devanei da Silva Ferreira. No país que mais mata transexuais do mundo – de 2008 a 2012, segundo a Transcender Europe’s Trans Murder Monitoring (TMM), foram 698, três vezes mais que o México, o segundo colocado, com 194 -, Deva é agente comunitária na Clínica de Família Santa Marta, co-gerida pela Prefeitura e pelo Viva Rio. “Nunca me prostituí, embora tenha amigas no ramo e as respeite”, diz, com seu jeito que mescla doçura com agressividade, resultados de quem tem apanhado bastante da vida.
Até o cadastro eletrônico da clínica, que a havia registrado como Devanir, mudou. Hoje ela é profissionalmente conhecida como Deva Rubenstayn. “Foi um avanço muito grande, para incentivar cada vez mais o respeito e o olhar diferenciado”, comemora a gerente da unidade, Larissa Santoro.
O sonho de Deva vai ser realizar em 2018, quando será submetida a uma cirurgia de mudança de sexo, em um hospital de Santa Catarina. Para isso, aguarda apenas o lado psicológico e psiquiátrico do tratamento que começou a fazer há seis meses. “É o dia que mais espero na vida, será o encontro com minha alma”, planeja ela, corpo sarado e cabelos lisos metade negros, metade descolorados. Deva assistiu e adorou “Garota Dinamarquesa”, que conta a história da primeira cirurgia de mudança de sexo de uma transexual, Oscar de melhor ator ao protagonista, Eddie Redmayne.
Claro que nada foi fácil em sua vida. Nascida e criada no Morro Santa Marta, desde criança sempre se viu de uma forma diferente, “nunca consegui me olhar no espelho e me ver um menino”, recorda. Filha de mãe feirante paraibana e pai balconista cearense, único homem entre quatro irmãs, o sofrimento começou dentro de casa. “Quando contei à minha mãe ficamos uma semana sem nos falar. Meu pai nunca aceitou e continuamos brigados até sua morte, há cinco anos”, completa.
Na escola não foi diferente. “Sempre tive trejeitos femininos e sofri muito preconceito. Um dia, aos 11 anos, cinco meninos se juntaram para me dar uma surra. Me machucaram tanto que quebraram meu nariz. Quem me salvou foi uma irmã, que também assumiu ser gay e hoje está casada com uma mulher”, conta. Os cinco foram expulsos da escola. Depois disso, Deva começou a aprender a lutar judô e também acabou expulsa da escola, depois de “quebrar” um colega que ousou difamar sua mãe. “Cansei de apanhar”, sintetiza.
Grupo Arco Íris
Aos 12 anos entrou para o grupo Grupo Arco íris, o qual frequenta até hoje quando sobra um tempo em sua vida atarefada, que se divide entre o trabalho na clínica e no salão. Compreendeu, desde cedo, que precisava ter renda própria para não depender do pai, ajudar a mãe e, já nessa idade, começou a vender jornal na rua. Pouco depois iniciou um curso de cinco anos de cabeleireiro, no qual se formou aos 17 anos.
A formação a credenciou a trabalhar como auxiliar no Salão Werner, mas não demorou a conquistar a cadeira de chefe de colometria, responsável pelas tinturas. Pouco depois abriu o próprio salão em sociedade com uma amiga, o Maricota’s, na Tijuca. Daí para abrir seu próprio salão, no Santa Marta, o Deva Sallon, foi um pulo. Nessa época, aos 21 anos, já havia assumido sua identidade trans.
Dessa vez, o salto se deu rumo ao inferno. Passeava com amigos portando maconha quando foi levada pela polícia para o presídio de Bangu, na zona Norte. Rasparam sua cabeça de cabelos que tocavam a cintura e a jogaram numa cela com quatro homens, um deles que partiu para cima de Deva. Dali, seguiu para outra cela, de estupradores. “Minha salvação foi ter conseguido a proteção do responsável entre os presos, do Comando Vermelho”, recorda.
“Doze piores dias da vida”
Em seguida a jogaram numa sala com 143 homens. “Foram os 12 piores dias da minha vida”. Que para alguma coisa serviram: “Foi também o melhor aprendizado para tirar forças de qualquer situação”, acrescenta. Acabou liberada pelo júri no dia da festa de aniversário da irmã gay. “Entrei na festa com vestido cor de rosa e salto alto. Fui ovacionada”, descreve, com brilho nos olhos.
Nessa época conheceu o atual companheiro, durante um passeio na praia. “Foi amor à primeira vista, mudou minha vida completamente”, exulta. Veio daí a força que a estimulou a trabalhar feito louca no salão para juntar os R$ 7 mil necessários à prótese de 275 ml de silicone nos seios, feita em um hospital em Copacabana, na zona Sul. “Depois disso me senti completa. Uma amiga me disse que essa mulher já existia em mim, a prótese só adequou meu corpo”, filosofa.
Agente comunitária
Era o ano de 2011 quando ela se submeteu a um processo de seleção para agente comunitária no Viva Rio. Ao ser contratada, em maio de 2012, já havia assumido o perfil da trans Deva. Para isso, também se submeteu a um tratamento hormonal pelo Instituto Estadual de Endocrinologia e Diabetes e começou o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, passaporte para a cirurgia de mudança de sexo.
Nem tudo, porém, entrou nos eixos. Deva ainda sofre com o preconceito de alguns colegas de trabalho – embora seja querida e respeitada pelos médicos e pacientes. Transita, no entanto, sem nenhum tipo de problema pelo Morro Santa Marta. “Hoje sou dotada de força e superação. Trouxe minha luta para cá”, resume ela, que é adepta do umbandismo.
(Texto: Celina Côrtes | Fotos: Amaury Alves)