“Adultos! Fiquem de joelhos e peçam desculpas aos jovens. A sociedade declarou guerra a vocês”, exigiu, emocionado, o padre Renato Chiera, da Casa do Menor São Miguel Arcanjo, no encerramento da missa em lembrança aos 22 anos da Chacina da Candelária, que vitimou oito crianças e adolescentes em frente à Igreja que dá nome ao episódio. O evento mobilizou 1.500 pessoas, segundo a organização, entre movimentos sociais, crianças e fiéis.
As chacinas da Candelária e Vigário Geral vitimaram 29 pessoas em menos de dois meses no Rio de Janeiro. Os casos, que tiveram repercussão internacional, chocaram o Brasil e impulsionaram a criação do Viva Rio, instituição que milita pelos direitos humanos e pela instauração de uma cultura de paz. Um dos fundadores, Tião Santos, acredita que “lembrar esses fatos, tomando as ruas, é o papel de quem acredita que só dessa forma nos preservaremos para que (as chacinas) não ocorram novamente”.
Na madrugada do dia 23 de julho de 1993, mais de 40 crianças dormiam na escadaria da igreja da Candelária quando cinco homens desceram de dois carros e atiraram à queima-roupa. Seriam nove vítimas se Wagner dos Santos não tivesse sobrevivido. Ele tinha 21 anos quando foi acordado e obrigado a entrar num carro, dentro do qual foi baleado quatro vezes. O corpo dele e de outros dois jovens foi abandonado em local próximo ao Museu de Arte Moderna (MAM), no Aterro do Flamengo. Wagner resistiu e hoje mora fora do Brasil.
Foi o relato do sobrevivente que garantiu a identificação e a prisão de quatro envolvidos no crime. Três policiais militares foram responsabilizados pelo caso e condenados pelos oito homicídios. Dois deles foram condenados a mais de 200 anos de prisão, mas foram beneficiados pela progressão de pena.
Irmã do sobrevivente, Patrícia de Oliveira Silva relembra a coragem que o jovem teve. “Ele achou que ia morrer também. Um dos quatro tiros entrou na nuca dele e saiu pelo olho”.
Aproximadamente um ano após o episódio na Candelária, Wagner sofreu outro atentado sendo atingido mais uma vez com quatro tiros e, novamente, resistindo. Em outubro de 1995, o sobrevivente pediu proteção ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para prestar novos depoimentos sobre o caso. Ele se mudou para a Suíça, onde reside até hoje. “Lá ele é reconhecido pelos seus feitos e não somente pela chacina”, disse Patrícia. Wagner tem sequelas que o fazem lembrar-se diariamente do dia 23 de julho de 1993. “Ele ficou cego de um olho e surdo”.
A Chacina da Candelária mudou a vida da família do jovem. Patrícia milita pelos direitos humanos e é contra a redução da maioridade penal. “Colocar as crianças na cadeia, assim como matá-las, não é a solução para o problema da violência. A população pede chacinas, principalmente quando não vão atingir seus filhos e tentam se justificar utilizando os antecedentes criminais, como se isso autorizasse o extermínio da juventude”, disse, acrescentando que esse discurso é replicado também pelas autoridades.
“Não foi um episódio isolado”
Proteger as crianças de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Isso é o que prevê o artigo 227 da Constituição Federal. A pedagoga Fátima Silva, 50, uma das integrantes do movimento Candelária Nunca Mais, entretanto, acredita que isso não está ocorrendo. “O que se vê é o abandono, a falta de políticas públicas e de prioridade orçamentária para trabalhar com esse grupo”.
Candelária Nunca Mais foi criado a partir da missa de sétimo dia pelas mortes. Na ocasião, o então arcebispo do Rio Dom Eugênio Sales pediu para que a data fosse lembrada enquanto houvesse crianças sendo assassinada pela violência. “Desde então lutamos. A Candelária não é um episódio isolado, mas faz parte de um histórico de violência que vem desde a ditadura militar. Matamos crianças e jovens em grupo e no varejo, principalmente pobres e moradores de favelas e áreas carentes”, aponta a pedagoga Fátima Silva.
O ministro da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) Pepe Vargas, lamentou que a violência contra crianças e adolescentes no Brasil esteja aumentando. “O homicídio de jovens e adolescentes é estarrecedor e nós precisamos de uma grande mobilização da sociedade e das esferas do poder público para enfrentar essa questão e promover mudanças legislativas para proibir o uso dos autos de resistência e permitir a ‘severalização’ do julgamento de crimes cometidos por grupos de extermínios”.
‘Redução não é a solução’
Este ano, o ato em memória dos 22 anos da Chacina da Candelária teve o mote da redução da maioridade penal, que foi aprovada parcialmente pela Câmara para homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte ou crimes hediondos, com exceção de tráfico. “É lamentável ver pessoas defendendo a redução da maioridade penal, pois isso vai agravar a violência”, declarou o ministro Pepe Vargas.
A ação contou com o apoio do Viva Rio Movimento Nacional de Direitos Humanos Movimento Nacional de Meninos/as de Rua, Pastoral da Juventude, Pastoral das Favelas, Pastoral do Menor e de outros 40 movimentos sociais.
(Texto: Flávia Ferreira | Fotos: Tamiris Barcellos)