Do alto de seus recém-completados 19 anos, Pablo Silva Saturnino coleciona muito mais que histórias de sua juventude. Usuário de drogas desde os seus 12 anos, já morou na rua e foi ameaçado de morte diversas vezes. O alívio chegou quando conheceu a Casa Viva, projeto que completa um ano, possibilitando um novo começo para os jovens que dele participam. Pablo é uma das muitas histórias de sucesso. Após oito meses do início de seu tratamento, o jovem está estudando, trabalha no Teleporto, reforma sua casa e planeja constituir uma família. “Tive que conhecer o inferno para querer me recuperar”, sintetiza.
Desde a inauguração, Casa Viva já acolheu 200 jovens. O projeto, realizado em parceira com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, acolhe crianças e adolescentes em situação de extrema vulnerabilidade social e risco pessoal, envolvidos em cenários de violação de direitos e exposição ao uso de substâncias psicoativas. Assim como Pablo, outros jovens já retornaram ao convívio familiar, como marco inicial de uma nova história.
Nascido e criado no Jacarezinho, Pablo entrou cedo no universo das drogas. No início o cigarro, depois o cheirinho do loló, a maconha, a cocaína e finalmente o crack. O vício e a necessidade de ajudar em casa o fizeram encarar a rua ainda criança, onde praticava malabares nos sinais do bairro de Botafogo, na zona Sul do Rio. Nesse momento, ainda no Ensino Fundamental, a escola foi deixada de lado e sua lacuna preenchida pelo acirramento do uso de substâncias psicoativas.
O contato com as drogas veio através de antigos amigos, que também o apresentaram ao comércio de entorpecentes da região. Quando Pablo foi recrutado pelo tráfico do Jacaré, com 15 anos, já havia abandonado a arte circense dos sinais e praticava pequenos furtos. Nos primeiros meses ele cuidava da venda das drogas em uma das bocas de fumo da comunidade. O lucro que conseguia com a venda de entorpecentes, porém, o transformou no braço direito do chefe do tráfico local. “Lembro que costumava andar com a mochila cheia de dinheiro. Chegava a transportar 50 mil reais em um dia”, diz.
Os 2,8 mil reais que recebia por mês, muito mais do que qualquer menino de sua idade receberia como aprendiz em um trabalho formal, somado ao assédio das meninas e às regalias conquistadas na região dificultavam sua saída, que só aconteceu por conta de um episódio que quase custou sua vida.
O castigo do tráfico e a rua
Nas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas existem regras, que podem gerar graves consequências e até o óbito dos que ousam descumpri-las. Para sorte de Pablo, no entanto, o fato de ter gastado 4 mil reais do lucro com a venda de drogas não foi suficiente para que os traficantes o condenassem à morte, embora as marcas do castigo permaneçam marcadas para sempre em seu corpo. Além de ser impedido de continuar no Jacaré, o rapaz teve o pé queimado. “Os amigos que ficaram comigo, que falavam que eram meus irmãos, queriam me matar”, recorda com angústia.
Pablo teve que sair correndo da comunidade e buscar abrigo na casa da mãe, em Jacarepaguá, onde começou a usar cocaína. Os constantes desentendimentos o levaram a tomar a decisão de morar na rua, onde, aos 16 anos, conheceu o crack. “Fui para as ruas de Copacabana, comecei a andar sujo e a fazer besteira para sustentar meu vicio”.
O jovem lembra com amargura desse período de sua vida, quando chegou a revirar o lixo para não morrer de fome. “Era muito difícil. Eu não podia entrar em uma lanchonete e pedir comida que as pessoas começavam a me xingar. Sei que passei por essa situação por que quis, sou responsável por tudo o que fiz até hoje”, assume.
Pablo ficou na rua por pouco mais de um ano. Durante esse período, as drogas ocuparam o espaço das necessidades mais básicas: se alimentar, tomar banho e ter um lugar confortável para dormir.
Inicio da mudança
O primeiro contato com o acolhimento ocorreu na véspera da páscoa de 2012. Pablo tentava dormir embaixo do viaduto que dá acesso ao Aterro do Flamengo quando ouviu um barulho estranho. Ele achou que fosse um dos “playboys” que costumavam agredir os moradores de rua daquela região, mas era um assistente social do programa de acolhimento da prefeitura. “Ele me falou sobre um abrigo para menores, onde eu poderia tomar um banho quente e comer alguma coisa. Aceitei e acabei indo pra um abrigo que tinha na Carioca, onde fiquei uma semana”.
Pablo já estava convencido de que queria outra vida quando um dos acolhidos falou do Abrigo Especializado da Prefeitura, em Campo Grande – projeto que antecedeu a Casa Viva. “Lá tinha piscina, quadra de esportes e era muito espaçoso. Passei bons momentos nesse local até que ele fechou”. Com o encerramento das atividades, ele foi levado à Casa Viva de Bonsucesso, onde permaneceu até completar 18 anos. “A Casa me deu muitas coisas boas, vou levar ótimos ensinamentos, bons amigos e a certeza de que posso ter uma vida melhor”.
A família
Hoje o rapaz trabalha com Serviços Gerais no Teleporto e está reformando sua casa, no Jacaré pacificado, para morar com a noiva, que está na Casa Viva da Penha. Eles já se conheciam de vista dos tempos de abrigo, mas o relacionamento começou há pouco tempo. L. completa 18 anos em setembro deste ano e também sairá da Casa. A ideia é que ela vá morar com Pablo e que ambos possam começar uma vida juntos.
A casa que ele reforma fica no terreno de seu tio, parente mais próximo do menino, já que o contato com a mãe é traumático e o pai faleceu há dois anos. Ambos eram usuários de drogas – ela de álcool e ele de cocaína. “Lembro que quando meus pais se separaram, eu e meus irmãos (ele tem quatro irmãos) não queriamos ficar com a minha mãe, pois ela bebia e nos batia muito. Então meu pai tinha que sair correndo para nos buscar na casa dela”.
Ele acredita que o contato precoce com as substâncias psicoativas, através de seus pais, despertou nele o desejo de experimentar. Passados seis anos da primeira tragada no cigarro à última pedra de crack, Pablo ainda se arrepende por ter entrado no universo das drogas, embora não esconda esse pedaço de sua história. “A vida é feita de escolhas e às vezes não escolhemos o melhor, mas uma história de sucesso é feita da forma como conseguimos superar tudo que passamos. Não tenho vergonha de assumir tudo que passei e as escolhas que fiz. Isso construiu o ser humano que sou hoje”, resume.
Seus próximos passos já estão traçados. Pablo quer terminar seus estudos e cursar faculdade de Engenharia.
De acordo com a coordenadora do projeto, Marília Rocha, a meta de reinserção familiar ocorre de 9 a 12 meses de permanência, ou até o acolhido completar 18 anos. “O próprio segmento que atendemos torna essa meta ainda mais desafiadora, devido ao histórico de violação de direitos, vulnerabilidade social, abuso de drogas, rupturas de laços familiares e permanência na rua nesse estágio tão frágil do desenvolvimento humano que é a adolescência”, conclui.
(Texto: Flávia Ferreira | Fotos: Vitor Madeira)