Tribunal de Justiça discute intolerância religiosa

Em resposta aos recentes ataques a religiões não hegemônicas, Rubem César Fernandes, diretor executivo do Viva Rio, inaugurou, na quinta-feira (16), uma série de encontros batizada de “Conte algo que não sei”, na biblioteca do Tribunal da Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), sobre o tema intolerância religiosa. “Os movimentos estão ficando menos religiosos”, analisa Fernandes, sobre as reações ao ataque à menina Kayllane Coelho, apedrejada em junho quando saía de um culto de candomblé.

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Para Rubem César Fernandes, os movimentos estão ficando mais cívicos e menos religiosos| Foto: Amaury Alves

 

A menina participou de uma passeata ecumênica no domingo (19), que saiu do Viaduto Negrão de Lima, em Madureira, e foi até o Parque no mesmo bairro, onde foram realizadas apresentações de grupos de afoxé, capoeira, jongo e danças africanas. “Estou cada vez mais segura, não tenho mais medo de vestir branco, a cor da minha religião”, disse Kayllane ao Viva Rio.

Ainda em junho, Ronilso Pacheco, liderança evangélica que atua no setor de Drogas do Viva Rio, postou nas redes sociais o texto Todos nós, evangélicos, apedrejamos uma menina de 11 anos, fazendo, ao mesmo tempo, um mea culpa e uma provocação sobre o episódio com Kayllane por iniciativa de fanáticos. O desabafo teve mais de 40 mil compartilhamentos 2 mil curtidas. Independentemente de sua orientação religiosa, Pacheco destacou: “A intolerância religiosa está no DNA do Viva Rio desde a sua fundação”.

 

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Ronilso Pacheco postou nas redes sociais o texto “Todos nós, evangélicos, apedrejamos uma menina de 11 anos” | Foto: Vitor Madeira

 

Mais do que isso. O tema permeia as principais bandeiras abraçadas pela instituição, como a luta pela descriminalização do porte de drogas, o desarmamento e a maioridade penal, entre outras causas. Todas estas iniciativas sempre contaram com o apoio de importantes lideranças religiosas.

Segundo Rubem César Fernandes, a instituição foi criada em dezembro de 1993 com três atos, entre eles um grande evento de orações com mais de 20 tradições religiosas direcionadas a um mesmo objetivo: a pacificação da cidade. “É possível uma grande variedade de crenças apontarem na mesma direção”, afirmou ele que, pessoalmente, “vai atrás” de várias religiões. Para Fernandes, intolerância religiosa “é a religião que deu defeito, uma enorme ameaça à consciência e à aceitação da diversidade”.

Espaço de comunhão e convergência

Para o coordenador do Viva Rio, Tião Santos, tratas-se um tema ainda presente nas entrelinhas da missão da instituição, na luta pelos direitos humanos e por uma sociedade sustentável. , observa ele, que já foi frei franciscano católico. Segundo Santos, o Viva Rio nasceu na esteira do Instituto de Estudos da Religião (ISER), com um forte componente de participação religiosa. “O amor é a essência de qualquer religião e a intolerância, uma ignorância do século 2 em pleno século 21”.

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Para Tião, lutar contra a intolerância religiosa é parte da luta do Viva Rio contra a violência | Foto: Tamiris Barcellos

 

À frente do Instituto de Estudos Religiosos (ISER) há sete anos, o judeu Pedro Strozemberg fala do pioneirismo da instituição em combinar religião com academia e de reconhecer seu verdadeiro impacto na construção das políticas públicas. “E há também o aspecto educacional, a Saúde e a Justiça. A religião é central e os movimentos religiosos são parte da sociedade civil. O drama, a intolerância religiosa, é gerado pela convivência e a crescente disputa por hegemonia – leia-se poder – entre estes diferentes grupos”, aponta. “Há uma dificuldade em reconhecer no outro a expressão religiosa legítima e verdadeira”, acrescenta. Para ele, no final das contas, a religião produz muito mais convergência que intolerância, por ser “um espaço de comunhão e convivência.”

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Strozemberg diz que a intolerância é gerada pela disputa por hegemonia entre diferentes grupos | Foto: Paulo Barros

 

O coordenador de Segurança Humana, Ubiratan Ângelo, médium kardecista e membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e do  Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Intolerância Religiosa para a Promoção dos Direitos Humanos, da secretaria estadual de Assistência Social (SEASDH), faz coro. “O Viva Rio trabalha com um cenário de paz social, de fazer com que as diferenças evoluam para o respeito mútuo, sem influir na opção de ninguém. Qualquer ato que venha a tolher a liberdade, um direito fundamental do ser humano, vai contra os princípios da instituição. O que é a liberdade religiosa senão a liberdade de pensar e de se expressar, como defende o Viva Rio?”, questiona.

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O que é a liberdade religiosa senão a liberdade de se expressar, como defende o Viva Rio, diz Ubiratan Ângelo | Foto: Vitor Madeira

 

Trajetória das religiões

A origem protestante foi o primeiro vínculo religioso de Rubem César Fernandes, conforme explicou no TJRJ. “Religião é um assunto que me toca”, admitiu, ao lembrar que seu pai foi pastor presbiteriano, cantava como tenor no coral da igreja, enquanto sua mãe era soprano e também ajudava a cuidar do templo. Depois de ser pastor por toda a vida, o avô desistiu da crença, por achar as igrejas “muito politiqueiras”. E seu tio teve seis filhos, quatro deles, pastores.

Em sua educação religiosa, Fernandes sempre achou que o protestantismo – nascido no século 16 – quebrou hierarquias e alimentou várias tradições. Provocado pela juíza Andrea Pachá, que mediou o encontro, o diretor do Viva Rio lembrou que os evangélicos se dividiram a partir da ditadura iniciada no país em 1964. “Nasceram então muitas lideranças de direita que denunciaram militantes aos militares. O mundo evangélico progressista se distanciou, foi perseguido e migrou para as universidades”.

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A juíza Andrea Pachá mediou o encontro no TJ RJ com Rubem César Fernandes Foto: Amaury Alves

Segundo ele, saiu da ditadura uma “geração progressista”, porém acomodada, que cresceu no mundo pentecostal de forma individualizada. A democracia favoreceu essas correntes mais locais e ajudou no crescimento do lado mais direitista dos evangélicos. Havia ainda uma minoria silenciosa que não se reconhecia neste novo cenário e deu origem à igreja Universal do Reino de Deus, criada em Nova Iguaçu. “Eles chegaram de uma forma criativa, que deu certo. O descanso de domingo, por exemplo, passou para as sextas-feiras”, citou.

Hoje, de acordo com Fernandes, há uma situação mais extrema de intolerância. Ele vê, no entanto, o início de um refluxo: “acho que vamos ver em breve uma retomada. A dificuldade maior tem sido casar segurança com direitos humanos, ainda vistos por muitos como balela. A igreja católica é outra que está tentando se ajustar, e vai se ajustar”, aposta. Ele destaca ainda a abertura de novos caminhos por lideranças como a de Ivanir dos Santos: “Ele fala uma linguagem de direitos humanos do ponto de vista do candomblé.”

Para o diretor do Viva Rio, os movimentos intereligiosos ainda são pequenos, enquanto a individualidade de cada religião mantém sua força. “Acredito que o caminho tem de ser pelo lado civil”, conclui.

 

O que os funcionários do Viva Rio pensam sobre a intolerância religiosa?

Rogéria Barros Nogueira (Gerência de Aquisição e Logística), 39 anos, vive em união estável, uma filha, agnóstica

“Fui criada na religião católica, filha de pais católicos. Fiz primeira comunhão e não cheguei a ser crismada. Aos 23 anos, comecei a pensar de onde vim e para onde vou. Frequentei um centro espírita de Allan Kardec e tenho tios evangélicos. Me considero agnóstica, para mim a existência de Deus não influencia a vida prática, milagres não acontecem. Tive leucemia, muita gente me ajudou e me curei por conta de minha vontade de viver e tentar ser forte. Tinha uma filha pequena, queria ficar curada e busquei a cura. Quando a gente morre, acabou. Se Deus existe, não me foi provado.

“Abomino a intolerância religiosa. Tenho pessoas da família que são da Umbanda e também já frequentei. As pessoas são livres para acreditar no que elas quiserem.”

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Rogéria Barros Nogueira é agnóstica | Foto: Amaury Alves

 

Jaqueline Moreira (Segurança Humana), 45 anos, casada, duas filhas, católica

“Sou filha de pais católicos. Houve uma fase em que me questionei. Frequentei as igrejas evangélica e Universal do Reino de Deus, mas o catolicismo me toca, pelo ensinamento, pelos rituais, foi onde me encontrei. Fiz primeira comunhão, fui crismada e participei de encontros de casais. Aproximei-me da Pastoral do Terço, mas não deu para continuar, então, procuro ajudar de outras maneiras. Vou à missa todos os domingos ou no sábado à noite.”

“Toda religião leva a um mesmo caminho: Deus. É um absurdo agredir uma pessoa por ela ter outra opção religiosa. Se é católico, evangélico, não importa, mas sim a ação para encontrar o caminho de Deus. Não há motivo para agredir o outro, não é por ser católica que acho que é o certo. Quem nunca errou? Ninguém é perfeito. Pecar, todos pecam.”

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Jaqueline Moreira é católica | Foto: Amaury Alves

 

Paulo Roberto Costa (Segurança), 34 anos, casado, dois filhos, evangélico

“Não tinha religião, mas nunca fui de zombar. Tocava percussão com um grupo de pagode no Santa Marta e o primo de minha esposa sempre me chamava para ir na igreja evangélica que ambos frequentavam. Um dia, eu estava com 24 anos, minha esposa me chamou para acompanhá-la e eu não quis ir. Do nada, me veio um pensamento, o espírito santo pousou no meu caminho. Fui à igreja e, quando cheguei, minha esposa me viu e começou a chorar. Estou lá até hoje, não pretendo sair e agradeço muito por isto.”

“Cristão nenhum jogaria pedras ou discriminaria o outro, independentemente da religião. O mundo anda complicado, cheio de pessoas ruins, sofri muito com o episódio daquela menina. Nenhum religioso diria o outro para deixar sua crença, não seria uma religião de verdade. Estamos aqui para ajudar o próximo. Jesus não quis saber quem era preto, branco ou amarelo, ele amou todos igualmente.”

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Paulo Roberto Costa é evangélico | Foto: Paulo Barros

 

Alexandre Moura (Financeiro), 41 anos, casado, três filhos, candomblecista

“Fui criado na religião católica. Fui batizado, fiz primeira comunhão, crisma e casei-me. Há nove anos, eu passava por problemas e me levaram a um centro de candomblé. O que me conquistou foi sentir todas aquelas pessoas me ajudando. O culto é uma junção da energia de várias pessoas ajudando uns aos outros e não há distinção de cor, nacionalidade ou orientação sexual, até porque o candomblé é uma prática ligada à natureza. Muitas vezes o problema que parece físico tem origem espiritual. Para cada erva há um orixá e o dono de todas as ervas é Ossain. A gente vê os resultados.”

“A intolerância religiosa é ligada à não aceitação da diferença, não só da religião. São católicos contra os evangélicos, umbandistas contra candomblecistas, brancos que não aceitam negros, japoneses contra chineses, enfim, seres humanos que não sabem lidar com a diferença. No dia em que as pessoas aprenderem isso, o problema deixará de acontecer”.

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Alexandre Moura é candomblecista | Foto: Amaury Alves

 

Anna Capelini (Logística), 54 anos, casada, três filhos, hinduísta

“Sou de família católica, batizada, mas sentia que faltava alguma coisa. Em minha busca, fui à umbanda, ao candomblé e, aos 38 anos, entrei na Hatha Yoga. Depois fiz um curso de meditação onde conheci a Vedanta, o monge indiano da ordem Ramakrishna e acabei visitando o templo que sedia a filosofia em São Paulo, cujo guru é Sri Ramakrishna (1836-1886). Quando ouvi os hinos, era como se eu já fizesse parte daquilo e nunca mais saí. Fiz minha iniciação e ganhei meu mantra pessoal. O que me prendeu foi a ausência de preconceito e do pecado e o respeito por qualquer religião.

“Intolerância é não aceitar o outro como um todo e a ausência de respeito às outras religiões, cuja razão de ser é a mesma, a promoção de um ser melhor. Já a tolerância é uma prática diária de aceitação e de respeito ao outro, porque todos somos um.”

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Anna Capelini é hinduísta | Foto: Paulo Barros

 

 

Sol Mendonça (Comunicação), 40 anos, solteira, kardecista

“Minha família materna é espírita kardecista e umbandista, mas só comecei a frequentar o centro kardecista aos 23 anos, quando decidi. Gostei do que ouvi e senti. Religião é algo muito íntimo e me considero extremamente religiosa. Rezo diariamente e vou ao centro toda semana, se não vou, fico mal. O kardecismo está entre as religiões mais tolerantes, também frequentado por pessoas que têm outras formas de conexão com Deus”.

“Intolerância religiosa é uma loucura, porque a religiosidade diz respeito a cada um, é de teor íntimo. Historicamente, é provocada por questões econômicas e políticas. O medo do desconhecido provoca intolerância porque está fora do controle daqueles que querem dominar. A religiosidade de uma pessoa independe da religião que ela frequenta, a conexão com os planos invisíveis está além das missas, dos cultos, das bíblias e tudo o mais.   Todos os caminhos levam a um só Deus.”

 

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Sol Mendonça é kardecista | Foto: Tamiris Barcellos

 

Robson Umbelino (Eventos), 53 anos, solteiro, um filho, gosta do espiritismo umbandista

“Fui educado na religião espírita umbandista. Meu pai, Miltolino Umbelino era afilhado do preto velho Pai Benedito. Não cheguei a desenvolver minha espiritualidade nesse sentido, mas tive contato com a Quimbanda e o Candomblé, tenho amigos que são pais de santo, ciganos. Sou voluntário do Movimento Inter Religioso (MIR) e sempre ajudo na organização dos eventos. Acredito em Deus, frequento qualquer religião e gosto mesmo de macumba, onde tem festa e cachaça.”

“Sobre a intolerância religiosa, acho que as pessoas têm de se dar, trocar ideias quando houver algum conflito ou assédio. Deus é um só, mas as ideias religiosas são diferentes. Gosto do espiritismo e tento respeitar as outras religiões.”

 

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Robson Umbelino pratica espiritismo umbandista | Foto: Vitor Madeira

 

Renato Cabral de Freitas (Gestão de Pessoas), 33 anos, solteiro, umbandista

“Fui criado na religião católica, fiz primeira comunhão, fui presidente de grupo jovem e dava aulas de catecismo. Aos 20 anos, conheci a Umbanda e me apaixonei pela filosofia, cuja condição é o amor, a caridade, a doação ao próximo e não diferenciar uma pessoa da outra. É agregadora, como a mãe, que consegue ver as qualidades de cada um. Este foi meu encantamento.”

“Quando vejo intolerância, fico chateado, porque o principal de cada religião é amar o outro, respeitar o outro, saber que cada um tem sua individualidade. Não tolerar é ir contra a própria vida. Amar e fazer o bem independentemente da religião ou da fé, vai mais da educação, do caráter. O intolerante não pode viver em sociedade”.

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Renato Cabral de Freitas, umbandista| Foto: Amaury Alves

Texto: Celina Côrtes|Fotos: Amaury Alves, Paulo Barros, Tamiris Barcellos e Vitor Madeira

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