Opção humanitária para usuários de crack em SP

A iniciativa do prefeito Fernando Haddad, um programa que oferece moradia e emprego a usuários de drogas, é ousada e absolutamente acertada. Ao abraçar os dependentes, a população de São Paulo dará um passo para acabar com as condições desumanas e punitivas que exacerbam os problemas sociais, pessoais e de saúde tanto para os usuários individuais de drogas quanto para a comunidade mais ampla.

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Liz Evans: “em Vancouver somos ricos em pessoas que resvalaram pelas frestas da sociedade canadense e convivem com dependências”

Abordagens semelhantes, pragmáticas e baseadas em evidências, estão sendo adotadas em muitas cidades do mundo, de Amsterdã a Lisboa, Sydney e Vancouver, onde governos tomam medidas para reduzir as dificuldades diárias das pessoas que usam drogas. Eles o estão fazendo porque faz sentido. Já está comprovado que as mesmas medidas que reduzem a dor e o sofrimento individuais geram benefícios palpáveis para a saúde pública, reduzem a desigualdade e, em última análise, melhoram a segurança nos bairros.

Em meu bairro em Vancouver, uma área de baixa renda permeada por drogas, somos ricos em pessoas que resvalaram pelas frestas da sociedade canadense e convivem com dependências. Muitas dessas pessoas vivem traumas constantes, pobreza, são sem-teto e sofrem crises de saúde física e mental.

Como São Paulo, aprendemos da maneira difícil que a repressão aos chamados “guetos de drogas”, com prisões e multas, traz melhorias apenas temporárias e superficiais; no longo prazo, não beneficia nossa comunidade. Ao longo dos anos 1990, em Vancouver, vimos a “guerra às drogas” fracassar redondamente. Em vez de ruas mais limpas, sofremos decadência urbana crescente e o aumento dos guetos. Em vez da redução do consumo de drogas, assistimos ao aumento vertiginoso dos índices de contaminação por HIV e das mortes por overdose.

Com o tempo, todos concordaram que era preciso mudar –desde os usuários de drogas até a comunidade empresarial, os políticos, profissionais de saúde, familiares, líderes religiosos, organizações sem fins lucrativos e as pessoas que simplesmente se preocupam o suficiente.

Desde 1991, a Sociedade PHS de Serviços à Comunidade, sociedade sem fins lucrativos que fundei, começou a criar alternativas, adotando uma abordagem semelhante à do prefeito Haddad. Começamos por oferecer moradia a usuários de drogas. Na época, fomos tachados de irresponsáveis porque oferecíamos moradia sem impor a abstinência ou a participação em programas de tratamento antidrogas. Contrariamente à opinião popular, constatamos que, ao darmos um teto aos usuários, também abrimos a porta para que mesmo os mais marginalizados de nossa comunidade pudessem ter acesso à saúde, alimentação e outros serviços, chegando com o tempo a incluir opções para o tratamento contra as drogas.

Como no caso da iniciativa do prefeito Haddad, começamos em pequena escala. Nosso projeto inicial foi apenas um hotel pequeno, com lugar para apenas 70 pessoas, e uma equipe mínima de profissionais. Ao longo dos últimos 20 anos, muitas outras portas se abriram a partir daquele projeto inicial. Hoje a PHS opera mil unidades habitacionais com serviços de saúde embutidos. Levamos serviços às pessoas, em vez de esperar que elas mudem para poderem receber os serviços. Oferecemos a nossos residentes o que eles precisam, desde alimentação e medicamentos até métodos de prevenção do HIV e hepatite C que “reduzam o mal”, como agulhas limpas e kits para fumar crack.

Operamos uma sala de consumo supervisionado, onde as pessoas podem usar drogas de rua em segurança, na presença de um enfermeiro. O programa previne as mortes por overdose e reduz a disseminação de doenças.

E também, pelo fato de estarmos em contato com as pessoas enquanto estão usando as drogas ativamente, podemos ajudá-las se e quando quiserem reduzir ou uso ou se recuperar. Na verdade, lançamos um programa de desintoxicação no mesmo prédio.

Pouco a pouco começamos a reconstruir os elementos básicos de uma comunidade. Hoje operamos um banco, uma clínica odontológica, uma mercearia, várias hortas urbanas e um estúdio de arte. Abrimos vários empreendimentos sociais –um café, uma loja de chocolates, uma empresa de dedetização, uma lavanderia– em que os membros da comunidade podem encontrar algo significativo a fazer com seu tempo, além de ganharem um pouco de dinheiro.

Para recuperar nossa comunidade, precisamos partir do reconhecimento e aceitação do uso de drogas, e não enxergar o uso como algo que precisa ser erradicado antes que seja possível conquistar quaisquer outros avanços. Em todos nossos espaços e programas, pessoas que durante muito tempo não foram vistas como membros de nossa sociedade são incluídas e bem recebidas, sejam ou não usuárias ativas de drogas.

Quando comecei este trabalho, mais de duas décadas atrás, eu chorava todos os dias diante da devastação que via em nossos hotéis e nas ruas em volta. Hoje há evidências científicas crescentes que comprovam que o enfoque humanitário e pragmático adotado em Vancouver resultou em menos desordem pública, menos disseminação de doenças e menor índice de mortes por overdose de drogas. Dados recentes mostram que as pessoas em minha comunidade estão vivendo em média dez anos mais do que viviam 20 anos atrás.

Não tem sido fácil. Muitas vezes eu desejo que fosse mais simples. Contudo, a realidade é que, se encarcerar usuários ou forçá-los a seguir tratamentos contra drogas funcionassem, teríamos acabado com a dependência de drogas anos atrás. Todas as evidências mostram que essas abordagens punitivas não funcionam. Em Vancouver, ao abrir nossos braços para os usuários de drogas, conseguimos criar uma resposta ao uso de drogas que não apenas é humanitária como é verdadeiramente terapêutica para o indivíduo e a comunidade. A “Operação Braços Abertos” pode funcionar porque opera com base nos mesmos princípios.

Liz Evans é diretora executiva e fundadora da Sociedade PHS de Serviços Comunitários

Tradução de Clara Allain

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