Drogas em pauta no STF

1/6/2016

Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal estão prestes a responder uma questão que parecia superada: o crime de tráfico privilegiado, em que o agente é primário, com bons antecedentes, não se dedica às atividades criminosas e nem integra organização criminosa, é um crime hediondo, e por isso o sistema de execução da pena deve ser o mais duro?

O placar atual mostra quatro votos favoráveis ao sim e apenas dois ao não. Caso a maioria se confirme, estaremos diante de (mais) um retrocesso histórico no âmbito das políticas de drogas e, pior, perpetrado por aqueles que esperávamos ver fincando a bandeira da racionalidade em política criminal – um supremo retrocesso.

O Habeas Corpus 188.533/MS é de autoria da Defensoria Pública da União e pede que a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que equiparou o tráfico privilegiado a crime hediondo, seja revista.

Primeiro, vale destacar que o próprio Legislativo, na elaboração da Lei Federal 11.343/06 – a atual Lei de Drogas -, optou por criar a figura do tráfico privilegiado com a clara intenção de punir de modo diferenciado aquela pessoa que não é, de fato, a principal beneficiária dos mercados paralelos de entorpecentes.

Essa intenção, expressa numa cláusula que prevê redução de pena nas circunstâncias descritas acima, é de suma relevância porque dela deriva a possibilidade de que esse preso, que reconhecidamente não deve ser considerado alvo prioritário do sistema de justiça criminal, cumpra pena num regime distinto.

A equiparação deste delito a crime hediondo – e, portanto, sujeito a um regime de cumprimento de pena muito mais severo – subverteria o sistema proposto pelo legislador, mais lógico e racional.

Em segundo lugar, é importante reafirmar que a falência da política criminal e penitenciária no Brasil tem como uma de suas principais causas a explosão do número de presos.

Essa situação deriva, por sua vez, da atual política de drogas, que enquadra usuários como traficantes e prioriza a punição através de penas desproporcionais, além de obstaculizar maneiras alternativas de lidar com a questão.

A ideologia da guerra às drogas – que enxerga no comércio ilegal de entorpecentes uma atividade a tal ponto abjeta que seus autores devem ser tratados como inimigos – é contraproducente, ineficiente, atrasada e violadora de direitos.
Some-se a isso o perfil do “alvo” desse sistema: os jovens, negros e pobres. Uma decisão no sentido de equiparar esses crimes aos hediondos só reforçaria a espiral de abusos, violência policial, encarceramento em massa, seletividade da justiça criminal, militarização das políticas de segurança e deficiências na área de saúde a que estão submetidas as comunidades mais vulneráveis do país.

Não é à toa, aliás, que o mundo caminha em sentido oposto, e seria lamentável ver a Suprema Corte avançar na contramão da história. Em um país com cerca de 700 mil presos (a quarta maior população carcerária do mundo) e um sistema prisional medieval, esperamos que os ministros sejam sensíveis às novas tendências globais nesse âmbito e que exerçam com autoridade o papel que se espera de uma Corte Constitucional, reafirmando os princípios da dignidade e da individualização da pena e garantindo que ninguém será submetido a práticas de tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

Caso contrário, estarão outorgando a todos os magistrados do país uma espécie de salvo conduto capaz de eximir o Judiciário de qualquer responsabilidade pelas torturas e pelo tratamento desumano a que são submetidos os presos brasileiros.

RAFAEL CUSTÓDIO é coordenador do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos

CRISTIANO MARONNA é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

JOSÉ CARLOS ABISSAMRA FILHO é diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

A íntegra da matéria pode ser acessada neste link: www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/06/1776933-supremo-retrocesso.shtml?cmpid=compfb

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